O barulho da porta batendo ainda ecoava dentro do apartamento.
Dentro de mim.
No meio do peito.
Fiquei ali.
De pé.
Sem saber se chorava, gritava, ou simplesmente deixava tudo desabar de vez.
Ele me destruiu.
Com as palavras.
Com o beijo.
Com a ausência imediata depois de me possuir por inteira.
Abaixei o olhar, vi a blusa dele ainda jogada no sofá.
Cheirei sem pensar.
Cheiro de homem. De desejo. De covardia.
Me sentei no chão da sala, abraçando as próprias pernas.
O corpo ainda queimava, mas agora era de raiva. De mágoa. De impotência.
Peguei o celular e disquei sem pensar duas vezes.
- Oi, miga... - a voz de Jaqueline atendeu do outro lado, ainda sonolenta.
E foi só ouvir aquela voz familiar que eu desabei.
- Ele veio aqui, Jaque...
Ele veio aqui e… e eu deixei. Eu deixei, poŕra!
As lágrimas escorriam pesadas, soluçadas.
- Bruna, o que houve? Que voz é essa? O Arthur tá beem?
- Não é o Arthur... sou eu, miga. Sou eu que tô m*l. Que tô… perdida.
Ela ficou em silêncio, mas eu sabia que estava escutando tudo. Como sempre.
- Ele bateu aqui, todo fodido da cabeça, com os olhos em chamas, e eu… eu deixei ele entrar. E aí… aconteceu.
- Aconteceu como?
- Sexo, Jaque. Fogo. Raiva. Desejo. Tudo junto. Eu quis tanto... tanto que me entreguei como se ele fosse meu.
- E depois?
Engoli seco.
A dor de repetir era ainda maior.
- Depois ele falou tudo. Tudo que sente e tudo que não pode sentir. Disse que pensa em mim todo dia, que me deseja como um maldito vício... mas que não pode. Que eu sou problema. Que eu sou o castigo dele. Que ele nunca vai poder ficar comigo porque sou a ex do Canário.
Silêncio.
- Ele me chamou de castigo, Jaque. E depois me beijou como se eu fosse a única coisa que ele queria salvar antes de morrer. E foi embora. Me deixou aqui... com esse buraco no peito.
Eu já chorava tanto que m*l conseguia respirar.
- E o pior… é que eu queria ele de novo. Mesmo depois disso tudo. Mesmo com a dor.
Jaqueline suspirou do outro lado da linha.
Com aquele tom que só as amigas de guerra sabem usar:
- Bruna… você tá amando.
Fechei os olhos.
Doía admitir.
Mas doía mais esconder.
- E o que é que eu faço, Jaque?
- Ou você engole esse amor, ou vai ter que ensinar esse homem a sentir. Mas das duas formas... vai doer.
Fiquei ali.
O telefone ainda no ouvido.
As lágrimas molhando meu pescoço.
O coração completamente dele, mesmo que ele nunca seja meu.
Acordei com o rosto colado no sofá.
A cabeça latejando, os olhos grudados de tanto chorar.
O corpo ainda doía, mas agora era outra dor
a da alma amassada.
Arthur dormia no quartinho.
O silêncio do apartamento novo era quase c***l.
Nem os passarinhos tinham coragem de cantar naquela manhã.
Mal levantei e ouvi as batidas na porta.
Quase ignorei. Mas era insistente, ritmada.
Abri devagar, e lá estava ela.
**Jaqueline.
Com um saco de pão, um copo de café e um olhar de quem já sabia tudo e mesmo assim veio.
- Bons dias pra quem chorou a noite toda por macho, né? - disse, empurrando a porta com o quadril e entrando sem cerimônia.
Não consegui nem sorrir.
A garganta ainda doía de tanto engolir mágoa.
Ela colocou o pão na mesa, me olhou de cima a baixo e soltou:
- Tá um caco, hein. E olha que você nem é dessas que se entrega. Que merda ele te fez, Bruna?
Sentei na cadeira, abaixei os olhos.
- Ele me abriu no meio, Jaque. Me rasgou com as palavras.
Ela se sentou à minha frente, pegou minha mão.
- E você deixou?
- Sim.
- E ainda assim quer ele?
Assenti, sem conseguir responder com a boca.
Mas os olhos já diziam tudo.
Jaqueline respirou fundo, tomou um gole do café e disse com a convicção de quem fala por todas nós:
- Então, você vai atrás dele.
Levantei os olhos, surpresa.
- O quê?
- Você ouviu. Vai atrás desse homem. Com os dois pés no peito dele. Porque se ele não te quiser, que te diga na cara. Mas se ele tiver com medo, com dúvida, com essa pose toda de homem quebrado… que sinta a poŕra da pressão de amar alguém como você.
- Mas ele…
Ela levantou a mão.
- Não me venha com esse ‘ele é delegado, eu sou ex de bandido’. Você é mãe. Você é mulher. Você é forte pra cäralho. E tá apaixonada. E quer saber? Ele também tá. Ele só não sabe lidar com isso.
- Se for pra você chorar de novo, que seja depois de tentar.
Mas não mais nesse sofá, esperando que ele volte feito herói de filme.
Vai lá.
Faz ele te encarar.
Faz ele tremer.
Sorri.
Um sorriso fraco, mas verdadeiro.
Ela tava certa.
Eu podia estar em pedaços.
Mas era inteira o suficiente pra não deixar esse amor virar só ferida.
- E o Arthur? - perguntei.
- Fica comigo. Vai ver um desenho. Vou dar bisnaguinha e amor.
Levantei devagar, fui até o banheiro, olhei meu rosto no espelho.
Os olhos ainda inchados.
A boca marcada, por conta do beijo viciante.
Mas por trás daquela dor…
tinha uma mulher pronta pra lutar.
Hoje, eu ia atrás dele.
E ele que aguentasse.
A coragem que Jaqueline enfiou em mim veio como um sopro quente.
Me vesti, lavei o rosto, respirei fundo.
Mas bastou dar três passos até a porta e...
a coragem virou dúvida.
Parei.
Dei meia-volta e encarei Jaqueline, que agora estava com Arthur no colo, passando manteiga na bisnaguinha dele com uma paz irritante.
- Tá, mas onde eu encontro ele, Jaque?
Ela ergueu os olhos, mastigando devagar.
- Ué… vai na delegacia.
Cruzei os braços, irritada.
- Que delegacia, criatura? Eu m*l sei o nome completo do homem! Ele nunca me deu número, endereço, nada. Só sei que se chama Marcelo Ávila. E que... me deixou com mais dor do que qualquer um já deixou.
A voz falhou no fim.
E ali, no meio da cozinha, eu senti que era ridículo.
Como é que eu podia sentir tanto por alguém que eu sequer conhecia por inteiro?
Jaqueline colocou Arthur no sofá com o pratinho de pão e veio até mim.
- Você acha que ele é um qualquer, Bruna? Você sabe muito bem quem ele é.
- Eu sei o que ele é. Delegado. Frio. Machucado. Orgulhoso. E covarde.
Ela não rebateu.
Me olhou com empatia, como quem entende.
- Então por que quer ir atrás?
Demorei a responder.
- Porque… mesmo depois de tudo, eu ainda queria que ele me escolhesse. Só uma vez. Mesmo que fosse pra me dizer que não dá. Mas que olhasse nos meus olhos. Que me encarasse.
Silêncio.
- Você quer alguém que fique, né?
- É. Pela primeira vez, Jaque. Eu só queria alguém que ficasse.
Ela segurou minhas mãos com força.
E eu…
eu continuava aqui, tentando entender o que fazer com esse amor sem endereço.
Ainda tava de pé na cozinha, quando ouvi o clique da capinha do celular dela abrindo.
Olhei de r**o de olho e vi Jaqueline com o rosto concentrado, dedo deslizando rápido pela tela, como se tivesse em alguma missão secreta.
- O que você tá fazendo? - perguntei, meio desconfiada.
Ela nem levantou o rosto.
- Resolvendo o problema.
- Jaqueline...
- Bruna.- ela me imitou no mesmo tom debochado.
- Se você não sabe onde ele trabalha, eu descubro. E antes do Arthur terminar essa bisnaguinha com manteiga.
Não consegui evitar.
Soltei uma risada.
Daquelas que saem junto com um soluço de choro.
Porque a dor ainda tava aqui, mas com ela ali… ela doía menos.
- Você é doida, sabia?
- Eu sou a doida que você precisa, minha filha.
Você acha mesmo que eu vou deixar você morrer por dentro por causa de um delegado lindo, gostoso e emocionalmente indisponível?
Não mesmo.
Revirei os olhos, mas o riso já escapava fácil.
- E como você pretende achar a delegacia que ele trabalha, Sherlock
Ela ergueu o celular como um troféu.
- Faceboök, Instägram, LinkedIn, Google… amiga, a internet pode ser um lugar c***l, mas também é um milagre.
E pelo que você me contou do sobrenome dele, já tenho o bastante pra rastrear até o signo do gato.
- Você é um perigo público.
- E você é uma boba apaixonada.
Agora senta aí, toma esse café e deixa que a sua amiga louca resolve a parte investigativa da sua novela mexicana.
Sentei.
Arthur dava mordidas pequenas no pão, me olhando como se soubesse que eu tava em frangalhos.
Jaqueline digitava com a destreza de uma hacker de filme americano.
E por mais absurdo que fosse…
eu me senti acolhida.
Ela era minha força quando a minha se escondia.
Era meu equilíbrio no meio do meu furacão.
E naquele momento, enquanto ela caçava o delegado da minha dor, eu percebi:
Mesmo quando a gente pensa que não tem mais nada,
sempre tem alguém segurando a nossa mão mesmo que com unhas pintadas de vermelho e uma língua afiada.
- Bruna… teu boy não tem privacidade nenhuma. Tu sabia que ele tem perfil no LinkedIn? E ainda colocou: ‘Delegado da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro – 12ª DP’.
- Tá brincando.
Ela virou o celular pra mim com um sorriso vitorioso.
- Tô nada. Olha aqui, ó: Marcelo Ávila, 37 anos, formado em Direito, especialização em Segurança Pública e um rosto de homem que não merece nem metade do sofrimento que você tá sentindo.
Mas já que mexeu contigo… mexeu com a gente.
- A gente quem?
- A gente: eu, você e o surto coletivo.
Quase engasguei de rir.
- Jaque, tu é maluca. Eu não vou entrar numa delegacia atrás de homem.
- Não vai, não.
Você vai entrar lá como quem foi resolver um assunto pendente com a justiça.
Nem que seja pra jogar uma cadeira na cara dele ou pra olhar bem dentro dos olhos dele e dizer:
‘Tu mexeu comigo, agora segura a bronca, policialzinho da frieza.
- Você ensaiou isso, foi?
- Não, mas daria uma ótima cena de novela.
Ela ria, mas o olhar dela era sério.
Firme.
Comprometido com a minha dor.
- Bruna, olha pra mim…
Você precisa de um desfecho.
De um sim ou de um não.
De verdade ou de mentira.
Você merece parar de sofrer no escuro por alguém que, se bobear, tá sofrendo igual do outro lado.
Suspirei, sentindo a garganta fechar.
- E se ele não quiser?
- Então você vai embora com a cabeça erguida.
Mas com a alma em paz.
Porque tentou.
Porque foi.
Porque não ficou parada esperando que o destino criasse coragem no lugar dele.
Arthur terminou o pão e me abraçou pela cintura.
Me encolhi, com ele nos braços.
E pela primeira vez em dias…
senti que talvez eu estivesse pronta.
Ou quase.
Mas com Jaqueline ali, nem precisava estar.
Ela já tava pronta por mim.
Entrei no quarto e me olhei no espelho.
Rosto abatido, olheiras profundas, cabelo preso de qualquer jeito.
Mas os olhos…
os olhos ainda estavam vivos.
E famintos por respostas.
Enquanto eu trocava de roupa, Jaqueline falava ao telefone na sala.
Tentei não prestar atenção, mas não teve como:
- Oi, bom dia. Aqui é Jaqueline, da comunidade da Rocinha. Eu gostaria de saber se o delegado Marcelo Ávila se encontra aí hoje na 12ª DP.
Parei.
Meu coração deu um solavanco.
Silêncio do outro lado.
- Ah, ele tá sim? Que ótimo, obrigada. Não, não precisa chamar não.
Só queria confirmar mesmo.
Tenha um bom dia.
Ela desligou e gritou do sofá:
- Ele tá lá!
Senti um calafrio.
Minhas mãos suaram instantaneamente.
- E o que eu digo quando chegar lá, Jaque? - perguntei da porta, tentando esconder o pânico disfarçado de dúvida.
Ela se levantou com as mãos na cintura.
- Você vai fazer o que prometeu.
Vai encarar ele.
Vai olhar na cara dele e dizer tudo o que te atravessou.
E se ele não conseguir te dar uma resposta… você vira as costas com a cabeça erguida.
- Mas e se ele perguntar o que eu tô fazendo lá?
Ela se aproximou, parou bem na minha frente.
- Você olha nos olhos dele e diz:
‘Vim buscar o que é meu: a verdade.
Ou você me diz com todas as letras que não quer mais me ver,
ou para de correr de mim feito moleque com medo de sentir.
- Jaque...
- Bruna, hoje você não sai de lá sem resposta.
Nem que eu entre naquela delegacia e faça um escândalo com o nome dele em caixa alta.
Eu ri.
Uma risada nervosa, cansada, esperançosa.
Tudo junto.
- Você não presta.
- Mas eu te amo. - respondeu, piscando um olho e jogando uma bolsa em mim.
Fechei o zíper da minha bolsa e ajeitei o cabelo, e segui.
Mas eu ia com a cara.
E a coragem.
E o coração escancarado.
Porque se ele não me queria…
que me dissesse olhando nos olhos.