Andava pelos corredores, quando ouvi alguns barulhos vindo das salas.
Segui calmamente e senti-me aliviado ao ver Audrea admirando os livros.
– Chegou cedo… – ela se vira e abre um sorriso acolhedor.
– Bom dia Padre Albert.
– Bom dia.
– Desculpe se cheguei cedo demais, é que, prefiro chegar cedo, do que atrasada – diz sorrindo.
– Não encare meu comentário como um questionamento – digo rindo – apenas me admirei.
Ela sorri sem jeito.
– Há algo que eu precise saber antes de começar?
– Bem, Padre Robert pediu que eu a acompanhasse neste primeiro dia, para ver a forma que você trabalha. Espero que não se incomode com minha presença…
– Claro que não. Será um imenso prazer… – seus olhos brilharam para mim, como a chama de duas velas acesas.
As crianças começaram a chegar e a se acomodar em seus lugares.
Fiquei na porta recebendo-as.
Audrea se aproximou.
– São quantas crianças? – indaga.
– Umas quinze – ele parece surpresa – não se preocupe, estarei aqui para o que precisar – percebi sua expressão se suavizar.
Quando todos ocuparam seus lugares, Audrea se apresentou e fez a oração inicial.
Fiquei no canto próximo a porta, observando a forma que ela lidava com as crianças.
Ela tinha um jeito sutil e meigo. As crianças não pareciam estranhar a nova presença no ambiente.
Quando ela começou a ler uma história para as crianças, ela sentou-se no chão e pediu que fizessem o mesmo.
Cada palavra que saía de sua boca era repleta de emoção e vida. Ela tratava as coisas de uma forma divertida.
– E então, quando a menina saiu de sua casa, encontrou uma raposa – disse e olhou rapidamente para mim – ela seguiu o animal até sua toca e tentou entrar nela – sorri com seus gestos.
Quando ela me olhou novamente, sorri de volta sem jeito.
Ela continuou a história, mas, o fim? Não me perguntem, pois, não sei. Parei de prestar atenção antes mesmo da metade. Permanecia imóvel olhando para a fina linha que formavam contornos dançantes; que iam desde sorrisos, a gestos exagerados para chamar a atenção das crianças.
Ouvia sua voz, mas, não entendia uma só palavra.
Algumas poucas vezes que ela corria o olhar pelas crianças, seu olhar encontrava o meu, e por algum motivo, isso me deixava com o coração aos pulos.
Ela adentrara em outra história. As crianças não queriam que ela parasse. Então, ela começou a inventar pequenas histórias, que se uniam em determinados pontos.
– E sabem o que ela fez? – após percorrer mais uma vez o olhar pela sala, ela me fitou intensamente – o que o senhor acha que ela fez Padre Albert?
Sou pego de surpresa, principalmente pelas crianças me encarando esperando uma resposta.
– Aposto que ela conseguiu achar uma saída.
Audrea sorriu.
– Isso mesmo, ela achou uma saída, mas não foi muito fácil. Ela correu muito…
Sorri diante de seu exagero facial, para demonstrar o cansaço da personagem.
– Sabem como ela escapou? – interrompo – ela saltou de uma montanha muito alta.
– Ela não morreu? – indaga um pequeno.
– Não – Audrea diz – ela mergulhou num rio de águas claras. A água desse rio era tão azul, que a menina pensou que fosse um sonho, e sabem o que ela fez – ela me olhou atentamente – ela decidiu morar nesse rio. Ela virou um peixinho – disse fitando umas das crianças mais próximas a ela.
As crianças riram e pediram mais, mas, estava na hora do lanche.
Eles fizeram um círculo e sentados no chão, fizeram sua refeição.
Audrea se aproximou.
– O que achou? – pergunto.
– Bem – ela os olha com emoção – gostei muito. Na verdade, estou gostando.
Observei-a atentamente, e percebi seu rosto ruborescer.
Ela baixou a cabeça e fitou a mãos.
– Porque a menina decidiu ficar no rio?
Ela me olha confusa.
– Ela gostou da paz que o rio trouxe.
Seus olhos eram castanho, o que fazia contraste com seu cabelo.
Sua pele não era tão clara quanto as das outras mulheres. Ela não parecia gostar muito de batom, o que deixava sua beleza natural ainda mais presente.
Ela tinha uma forma de olhar, como se falasse. Não era preciso dizer muito coisa para saber o que estava acontecendo naquele momento.
– Padre Albert… Eu…
– Sim? – sim, diga! Diga, por favor!
Ela me olhou durante alguns segundos, mas, desviou o seu olhar.
– Obrigada.
Ela sorri gentilmente, mas, em meu coração sabia que havia algo mais.
Mas, o que poderia fazer? Arrancar palavras de sua boca? Jamais. Se ela não queria me dizer o que seus olhos transmitiam, nada poderia fazer.
– Disponha.
Ao término da aula, as crianças se dispersaram no pátio, a espera de seus pais.
Fiquei de longe observando o entrosamento de Audrea com eles. Aos poucos as crianças foram indo embora.
Quando a última se despediu de Audrea, aproximei-me dela.
– Vou arrumar a sala – diz – estou exausta – diz rindo.
Seguimos para a sala e organizamos tudo.
– Pronto – diz ao guardar o último livro no lugar.
– Vai se acostumar com o cansaço – digo.
Ela sorri e segue para sua mesa.
Ela faz algumas anotações e pega sua bolsa.
– Virá para a missa das cinco? – havia necessidade de perguntar? Não. Claro que não. E muito menos devia.
– Virei sim.
Sorrio aliviado por sua resposta.
Ela se levantou e seguiu para a porta. Fiz o mesmo.
Saímos e ela trancou a porta.
– Obrigada por tudo.
– Não precisa agradecer.
Acompanhei-a até a porta lateral, que dava acesso a um beco. As portas centrais ficavam fechadas a partir do meio-dia.
– Padre Albert, em um outro momento, gostaria de lhe confessar. Seria possível?
– Claro. Se quiser, tenho tempo agora.
– Agora não – diz – mas, prometo que virei o quanto antes.
– Tudo bem.
Ela permaneceu alguns segundos parada.
– Tenha um bom dia Padre – diz e saí.
Ela se afastou lentamente, e a cada passo que ela dava, sentia uma imensa v*****e de trazê-la de volta. E foi o que fiz.
– Audrea! – corri até ela, antes que alcance a calçada para a rua.
Segurei em seu braço, e seus olhos seguiram direto para minha mão.
Seus olhos castanhos denotavam ansiedade e euforia. Ela não dizia uma só palavra, mas, sabia que ela se sentia da mesma maneira que eu.
Como podia ser possível? m*l nos conhecíamos, não tínhamos um convívio para que eu pudesse conhecê-la melhor.
Era o que chamavam de “amor a primeira vista”.
– Sim? – ela quebra o silêncio.
Reteso-me ao perceber que pensamentos impróprios consumiam minha mente.
Solto-a e ela parecia surpresa.
– Desculpe, é só que… – tentava achar as palavras, mas, para o meu azar elas não viam.
– Sim Padre? Pode dizer!
Tanto quanto eu, ela esperava algum tipo de iniciativa, mas, era errado, impossível e impróprio.
Não podia deixar que tal coisa me acontecesse.
– Nada, apenas quero agradecê-la por se prontificar a trabalhar com nossas crianças.
Ela baixa a vista e sorri.
Ela sai e desta vez não a impeço.
Entro rápido, antes que cometesse mais algum erro.
Sigo para os meus aposentos e ajoelho-me junto a cama.
Rezei pedindo perdão a Deus, por ter deixado que tais pensamentos sucumbissem minha mente – mesmo que por curto tempo.
Não tinha o direito de sentir tais coisas por mulher alguma, muito menos por Audrea, uma jovem que se prontificara a nos ajudar com o trabalho com as crianças.
Mas, ao mesmo tempo em que rezava pedindo perdão, involuntariamente, pedia para que ela não tivesse medo de mim, que não me interpretasse de forma errônea e que não fugisse.
Levantei a cabeça e fitei a parede. Seus olhos castanhos que pareciam me devorar, me veio a mente.
Fechei os olhos por um instante, e senti algo de que tanto meus amigos falavam.
Sempre busquei a santidade, procurei manter minha mente sã, mas, naquele momento estava sendo difícil.
– Dai-me forças, eu não quero ser mais um a cometer tal erro.
A maioria dos sacerdotes desistem, abandonam a vocação nos seis primeiros anos. E eu tinha apenas seis anos de ordenação. Mas, não podia deixar que tal fato pesasse sobre mim, e muito menos que fosse usado como desculpas para que me desse ao luxo de ter tais sentimentos por Audrea.
Muitos, nos piores casos – meus próprios companheiros – cederam, e mantinham casos escondidos. Escondidos pelo menos da sociedade extremamente conservadora.
Pedi novamente perdão, e pedi principalmente, que tirasse tais pensamentos de minha mente.
Levantei e segui para a janela.
Fitei a enorme vegetação que se estendia até os limites de Salvatore, e pensei: seria este o motivo de eu estar neste lugar? Mais uma provação em vida que eu teria de passar?
Respirei fundo, e apesar de saber que era errado, desejei que logo chegasse a hora da missa, para que pudesse ver aqueles lindos olhos castanhos, que brilhavam para mim de forma suplicante, como se pedissem socorro, como se pediam refúgio.