Isabela adorava buscar Gabriel na escola. Era o momento do dia em que tudo parava: o trabalho, os e-mails, os conflitos. Bastava ver aquele rostinho sorrindo atrás do portão que o mundo fazia sentido outra vez.
Mas naquela sexta-feira, havia algo diferente. Gabriel saiu correndo como sempre, mas com um entusiasmo que ela não via desde o Natal.
— Mããããe! Você não sabe quem apareceu no treino hoje!
— Ah, é? Quem?
— Um novo treinador! Ele é o máximo! Chamam ele de Treinador Rico!
Ela franziu a testa, sorrindo.
— “Rico”? Que nome engraçado. Como ele é?
— Alto. Cabelo castanho, meio bagunçado. Ele corre rápido e chutou a bola tão forte que quase derrubou a trave! — Gabriel estava empolgado, os olhos brilhando. — E ele é canhoto, igual a mim! A gente até falou disso!
Isabela sentiu o coração acelerar.
— Canhoto?
— Sim! E ele também não gosta de suco de laranja! Eu disse que dava coceira na minha boca, e ele falou que nele também! E ele espirrou um monte quando passou perto das flores! Igual eu na casa da vovó!
Ela parou. Por um segundo, o mundo ficou em silêncio.
Canhoto. Odiava suco de laranja. Alergia a pólen.
Era como ouvir a descrição de alguém que ela conhecia tão bem que o corpo dela ainda lembrava do toque.
— Filho… esse Treinador Rico… como é o nome completo dele? Você sabe?
Gabriel pensou por um momento.
— Acho que é Henrique… Henrique D'alguma coisa. Mas ele disse que é só Rico. É mais legal.
A respiração de Isabela falhou.
Henrique.
O pai do seu filho estava treinando o próprio filho… sem saber.
Era como se o destino estivesse rindo dela. c***l. Implacável. Perfeito.
— Mãe? — a vozinha chamou, puxando sua mão. — Você tá pálida. Quer que eu chame a tia da cantina?
Ela sorriu, engolindo seco.
— Não, meu amor. Tá tudo bem. Só fiquei surpresa. Esse treinador… ele apareceu do nada?
— Ele disse que era amigo do diretor. Que tava voltando pra cidade e queria ajudar. E ele é muito legal, mãe! Ele me ensinou a driblar com o pé esquerdo! Disse que a gente tem vantagem, porque a maioria é destra!
Isabela quase riu. Claro que ele diria isso. Henrique sempre fez questão de transformar diferenças em orgulho.
De repente, tudo parecia fora de controle.
Henrique estava mais perto do que nunca. Perto do filho. E pior — Gabriel estava começando a criar laços com ele.
Ela sabia que não poderia impedi-lo. Nem seria justo. Mas como contar a verdade agora?
E se ele a odiasse?
E se Gabriel se magoasse?
Ou pior… e se eles se amassem e ela fosse deixada para trás?
---
Naquela noite, sentada na varanda da casa, Isabela observava Gabriel dormir no sofá, com um desenho animado ainda passando na TV. A manta subia e descia com sua respiração tranquila. Ela passou os dedos nos cabelos do filho e deixou as lágrimas virem, silenciosas.
Ela construiu o próprio mundo para protegê-lo. Mas o passado havia encontrado um jeito de entrar.
E agora, não havia mais como impedir o inevitável.
O reencontro entre pai e filho estava acontecendo.
Mesmo que ninguém soubesse disso ainda.
Capítulo 6 – Um Reflexo Impossível
Henrique chegara ao campo da escolinha cedo, como fazia há algumas semanas. O convite do diretor, um velho amigo da família, tinha sido bem-vindo. Depois de anos lidando com números, pressão, e reuniões intermináveis, treinar um time infantil de futebol parecia um alívio inesperado.
Ele nunca foi de criar laços rápidos. Mas havia uma exceção.
Gabriel.
O garoto era diferente. Observador, curioso, inteligente. E, para seu completo espanto, canhoto. Assim como ele.
Na última aula, o menino espirrou cinco vezes ao passar perto do canteiro de margaridas. Depois recusou o suco no lanche, dizendo que suco de laranja dava coceira na boca. Henrique não pôde deixar de rir — ele dizia a mesma coisa quando era pequeno, e ninguém acreditava.
Era como olhar para o espelho do passado.
Agora, ali estava o garoto outra vez, sorridente, com os tênis tortos, a bola embaixo do braço e a mochila quase arrastando no chão.
— Treinador Rico! — Gabriel gritou, correndo até ele.
Henrique agachou-se, bagunçando seus cabelos.
— Fala, craque. Pronto pra mais uns dribles de canhoto?
— Sempre! — respondeu o menino, animado. — Mas olha… hoje minha mãe vem me buscar. Você vai conhecer ela!
O coração de Henrique bateu mais forte.
Por algum motivo que ele ainda não compreendia completamente, aquele nome — Gabriel — começava a soar diferente nos seus ouvidos.
Algo se encaixava. Algo que o incomodava.
E então, no meio de uma risada do garoto, ele se soltou:
— Gabriel, qual é o seu nome completo mesmo?
O menino, distraído com a bola, respondeu sem pensar:
— Gabriel Henrique Monteiro.
Silêncio.
Henrique sentiu o chão sumir sob seus pés.
Henrique.
Monteiro.
Não podia ser.
— Gabriel… sua mãe já te falou de onde vem seu nome?
O menino deu de ombros.
— Ela disse que me deu o nome porque é forte. E bonito. E porque ela amava esse nome desde sempre.
Henrique se endireitou devagar. O olhar fixo, duro.
Monteiro. O sobrenome ecoava como um tapa.
Isabela.
Ele sabia.
Antes mesmo de olhar em direção ao portão, ele soube que ela estava ali.
E estava.
Isabela atravessava o gramado com passos hesitantes, mas firmes. Usava um vestido azul claro que dançava com o vento, e os cabelos soltos como há anos ele não via. Ela carregava consigo a tensão de quem segurava o mundo nas costas.
Henrique não disse uma palavra.
Apenas se afastou, voltando a atenção para o treino. Gritou algumas instruções, fingiu uma leve correção técnica, sorriu para os outros meninos.
Mas por dentro?
Um furacão.
Canhoto. Alergia. Suco. Nome. Monteiro. Gabriel.
Os traços estavam ali. A boca. O jeito de franzir a testa. O olhar curioso.
Ele nunca esqueceria aquele olhar. Era seu. E agora também era do menino.
— Filho, vamos? — Isabela chamou com suavidade.
Gabriel correu até ela, mas antes virou-se e acenou.
— Tchau, treinador Rico!
Henrique respondeu com um aceno lento, a mente tão distante quanto possível.
Ela evitou seus olhos. Ele fez o mesmo.
Mas os dois sabiam.
Aquela muralha de silêncio entre eles estava prestes a ruir.
E quando caísse, nenhuma mentira resistiria.
Capítulo 7 – Verdades no Silêncio
ISABELA
No carro, com Gabriel já preso à cadeirinha, Isabela manteve os olhos no retrovisor, observando o campo onde Henrique ainda estava.
Ela sentia o sangue martelar nas têmporas.
— Mãe… o treinador não falou com você. Ele não gostou de você?
Ela forçou um sorriso.
— Talvez ele só estivesse concentrado no treino, amor.
— Mas ele sempre sorri… — Gabriel disse, pensativo. — Hoje ele tava estranho. Igual você tá agora.
Isabela ligou o carro, querendo fugir do peso daquelas pequenas observações que doíam mais do que qualquer acusação direta.
No caminho, os pensamentos a dilaceravam.
Henrique sabia.
Ou pelo menos… estava perto demais de saber.
Aquela pergunta. O olhar fixo. O silêncio.
Ela não teve coragem de encará-lo. De ver no rosto dele o momento exato em que a ficha caiu. Ela ainda não sabia o que doía mais — o medo dele a odiar ou a possibilidade de ele simplesmente não querer fazer parte da vida de Gabriel.
A verdade é que ela também foi vítima.
Ela contou da gravidez.
Ela tentou.
Mas a ligação caiu no vazio. O silêncio dele foi o veredicto. Ela acreditou, chorou, se ergueu.
E agora ele estava ali.
Ensinando o filho a chutar com o pé esquerdo. Rindo com ele. Vendo seus traços nele.
O passado estava voltando. E dessa vez, ela não tinha mais para onde correr.
---
HENRIQUE
No vestiário, enquanto os meninos se trocavam e os pais os levavam embora, Henrique permanecia parado, com as mãos nos bolsos e o olhar perdido em um ponto qualquer da parede.
Ele não era homem de ilusões. Sempre foi lógico, direto, calculista.
Mas nada no mundo prepararia alguém para ver uma versão em miniatura de si mesmo chamando outra pessoa de “pai”.
Porque era isso que estava acontecendo, não era?
Ou…
Não.
Gabriel Henrique Monteiro.
Isabela.
Os traços não mentiam. As coincidências eram muitas. Aquela criança… era dele.
E se ela sabia? Claro que sabia. Sempre soube.
Mas então… por quê?
Por que o esconder?
Ele se sentou no banco, a raiva crescendo sob a pele. Mas era uma raiva confusa, amarga. Porque parte dele lembrava — lembrava de ter esperado por ela. Por explicações. Por um retorno.
E nada veio.
E agora, depois de cinco anos, ela surge… com um filho?
Mas então, uma outra voz dentro dele sussurrou: E se ela também foi enganada?
Maurício.
A lembrança do sócio, sempre atento demais, envolvido demais nas decisões que não lhe cabiam… sempre com um comentário sutil, sempre com algo a esconder.
A verdade estava ali, nos olhos do menino, no nome, nos gestos.
Mas a mentira do passado ainda prendia suas mãos.
Henrique sabia que não podia confrontá-la com raiva. Ele precisava entender. Saber tudo.
E, se a dúvida virasse certeza… então o mundo ao redor deles nunca mais seria o mesmo.
---
NO DIA SEGUINTE
Henrique estava parado à entrada da escolinha, com os braços cruzados. Sabia que Isabela viria buscar Gabriel.
E ela veio.
Dessa vez, sozinha.
O olhar dela encontrou o dele. Ela parou. Os olhos diziam tudo o que a boca não ousava.
Ele deu um passo à frente.
Ela respirou fundo, tentando manter a dignidade que construiu com tanto esforço.
Mas antes que qualquer palavra fosse dita, Gabriel saiu correndo da quadra.
— Mãe! Mãe! Hoje o treinador Rico me chamou de “pequeno furacão”! Igual o vovô chamava você!
Silêncio.
Henrique não desviou o olhar.
E, naquele momento, ela soube.
Não havia mais escapatória.
Ele sabia.