Cap.1 - Infância
Depois de uns anos fora da sua terra natal, Aurora, agora com 22 anos, regressa. Os pais ainda não sabem. Como poderiam? Não há contacto entre eles.
Aurora sempre foi uma criança complicada. Em casa, passava grande parte do seu tempo, fechada no quarto, com os auscultadores e com um livro na mão. Era reservada e o seu círculo de amigos era essencialmente a Clara, com quem se sentava nas aulas e com quem partilhava timidamente algumas coisas no intervalo. Isto quando não estava metida em lutas por ser "Maria-rapaz", como lhe chamavam, gozando com ela. Com o tempo, as lutas tornaram-se mais recorrentes e era constantemente chamada à sala do diretor para a já conhecida reprimenda, que continuava em casa a cargo dos seus pais.
Às vezes, Aurora faltava às aulas, para visitar a sua avó Amélia que vivia num lar. Amélia sabia que quando ela a visitava, faltava à escola, mas nunca repreendeu a neta por isso. Se Aurora ali estava era porque precisava dela. Amélia não dizia nada, apenas escutava Aurora, que lhe confiava todos os pensamentos e sentimentos. A avó era a sua grande confidente. Passavam umas horas juntas e no final, Amélia sempre abraçava Aurora e dizia-lhe o quanto a amava. Era disso que Aurora necessitava e Amélia sabia-o. Infelizmente o seu filho, o pai de Aurora, era uma pessoa que não sabia demonstrar os seus sentimentos, fossem eles bons ou maus. Não era capaz de dar um abraço, sem que lhe o pedissem. Ele amava a Aurora, mas não sabia demonstrá-lo e dizê-lo era algo impossível para ele. Já a mãe de Aurora, era o contrário. Ela abraçava Aurora constantemente, mas era sempre um abraço rápido e partilhado com uma chamada telefónica. A mãe de Aurora era assistente pessoal e não tinha horário de entrada, nem de saída. Estava sempre a trabalhar, mesmo quando estava de folga. Pouco olhava para Aurora, à exceção das vezes em que sentavam à mesa, depois de uma chamada do diretor da escola.
Sem saberem o que fazer com Aurora e com a vida agitada que tinham, um dia tiveram a ideia de matricular a Aurora numa escola militar e Aurora foi enviada para lá, com apenas 10 anos.
O contacto entre os pais e a Aurora, com o passar dos anos, diminuíu, até desaparecer. Estava na escola sete dias por semana, vinte e quatro horas por dia. Nem nos dias de festa e comemorações saía. Amélia enviava-lhe mensalmente roupas novas, livros, um envelope com algum dinheiro e uma carta que confortava o coração da neta. Aurora manteve contacto em segredo com Clara, pois os pais desta proibiram a filha de falar com Aurora, quando souberam que ela tinha partido o nariz a um rapaz da turma delas, numa das lutas. Trocavam mensagens de texto, praticamente todos os dias. Era a partir dela que ía sabendo como estava a avó, agradecia-lhe pelas coisas que lhe enviava e respondia-lhe às cartas.
Aurora, com o passar dos anos, aprendeu a reprimir a dor e decidiu o que queria para si e para o seu futuro. Tornara-se numa rapariga responsável e rigorosa. Tanto nos estudos como no seu treino físico, evoluíra. Era focada e disciplinada. Todos os dias treinava para melhorar em todas as competências exigidas quer pela escola, quer por ela mesma.
Aos 18 anos começou a sua vida militar, ao alistar-se na tropa.
Nas datas festivas, queria muitas vezes visitar a avó, mas não tinha como. O contacto com os pais continuava nulo. Eles sabiam que ela já não estava na escola, pois tinha atingido a maioridade, mas na escola, ela não informou o que faria a seguir, na sua vida, pelo que se eles soubessem, seria apenas pela sua avó. Sair e voltar para o quartel no mesmo dia, para visitar a avó, era impossível, dado a distância. E mesmo que tivesse dois dias de dispensa, onde iria pernoitar? Em casa de Clara também não podia. Apesar de ela ter convidado inúmeras vezes, ainda vivia com os seus pais. Aurora acaba sempre por afastar essas ideias e permanecia no quartel.
Um dia, com 21 anos, treinava no ginásio do quartel, treino livre, quando o seu telemóvel tocou. Algo raro de acontecer. Pegou no telemóvel e o nome de Clara estava na tela.
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AURORA
Clara nunca me ligava, alguma coisa devia ter acontecido. Atendi.
_ Clara?
_ Aurora, desculpa estar-te a ligar... estás ocupada? - parecia nervosa.
_ Treinava, mas podes falar. Passa-se alguma coisa? - senti que algo não estava bem
_ Oh Aurora! Desculpa dizer-te assim... mas... - Clara media as palavras. Passava-se mesmo algo de errado. Permaneci calada. - A tua avó, Aurora... Amor, a tua avó sentiu-se m*l esta manhã e não resistiu.
Caiu-me tudo. Desliguei a chamada sem pronunciar uma única palavra. Guardei o telemóvel na minha bolsa. O meu coração estava pequenino e batia descompensado. Senti um aperto, que me fez levar as mãos ao peito e ficar de cócaras. Não conseguia respirar, a visão ficou ofuscada e comecei a suar. Fechei os olhos. Na minha cabeça, só lamentava: "A minha querida avó!". Alguém deve ter reparado que eu não estava bem, porque ouvia chamarem pelo meu nome, mas tudo o resto eram vozes ao longe e eu não me conseguia focar nelas. Todos os momentos que passei com a minha avó passavam rápido pela minha cabeça, que latejava. Consegui focar num desses momentos. A minha avó abraçava-me e eu sorria. Foi nesse momento, no meio do abraço, que guardei toda aquela dor. Reprimia-a com todas as minhas forças, como se estivesse a amachucar uma folha de papel, transformando-a numa pequena bolinha, que apertava cada vez com mais força. Inspirei fundo e abri os olhos.
_ Esteves! - gritava um dos superiores, ajoelhado no chão à minha frente. Ali eu não era Aurora. Todos eram tratados pelo seu sobrenome. - Esteves? Estás bem?
Levantei o olhar. Recuperava o controlo de mim mesma. A respiração voltava ao normal e a sensação de calor dissipava. O coração abrandava.
_ Sim, senhor. Lamento se o assustei, senhor. - respondi.
_ O que raio se passou? - pela primeira vez, senti uma pequena preocupação da parte dele.
_ Más notícias de casa, senhor. Mas agora está tudo em ordem, senhor. - Não queria que ninguém soubesse o que tinha acontecido.
_ De certeza, Esteves? - perguntou, desconfiado.
_ Afirmativo, Senhor. Permissão para continuar o treino?
_ À vontade, soldado. - ele assentiu.
Bati continência e dirigi-me para o saco de boxe.
Estive a treinar todo o dia. Fui para a caserna, sem jantar, após um banho. No quarto mandei uma mensagem à Clara para agradecer por ela ter ligado. Pedi-lhe para estar presente no funeral por mim, pois não o conseguia fazer. A seguir, desliguei o telemóvel e deitei-me. Pretendia dormir, mas não o consegui fazer tão rápido como queria.
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No mês seguinte, Aurora alistou-se numa missão de paz no Kosovo, onde passou 6 meses. Viu fome e miséria. Ajudou na distribuição de alimentos e bens materiais em zonas mais precárias, permitindo uma passagem com os seus camaradas, para as instituições humanitárias poderem fazer o seu trabalho. Fez várias patrulhas para garantir a segurança do perímetro. E continuou a realizar o seu treino diário. Quando regressou, recebeu uma medalha de mérito pelas suas qualidades e virtudes militares excecionais: coragem, lealdade, disciplina e dedicação ao serviço.
Quando completou os seus 22 anos, decidiu que queria aproveitar tudo o que tinha aprendido até ao momento, e aplicar num emprego como segurança. Algo mais tranquilo, que lhe permitisse ter uma vida social.
Em conversas com Clara, percebeu que o pai da amiga precisava de um líder para a sua equipa de segurança na sua empresa. Resolveu candidatar-se, mas pelos protocolos normais, sem qualquer influência de Clara e assim o fez. Nesse mesmo dia, apresentou o pedido formal aos seus superiores, para rescindir contrato.
Na mesma semana, obteve uma resposta positiva por parte da PrimeShares, empresa do pai de Clara. Não foi necessária uma entrevista presencial, pois o currículo de Aurora falava por si. Começaria no início do próximo mês. Só tinha de cumprir serviço militar até ao final do mês, e voltaria à sua terra natal.