Elias se afastou da boca com passos pesados, o sangue fervendo em suas veias. O confronto com Matheus não saía da sua cabeça. Ele se sentia humilhado, diminuído diante das reclamações dos moradores e da bronca pública do amigo de infância.
Encontrou um ponto na entrada de uma viela, onde se sentou no meio-fio, acendendo um cigarro. A noite estava abafada, mas o morro fervilhava com as risadas e sons dos becos. Ele fumava em silêncio, olhando para os corredores da comunidade que ele considerava parte de si, mas que, naquele momento, pareciam virar as costas para ele.
Não demorou para TK, um dos homens de confiança do grupo, surgir na viela. Ele carregava o mesmo sorriso malicioso de sempre, mas havia algo diferente em sua postura. Ele percebeu a irritação de Elias antes mesmo de falar.
— Tá aí, chefe? — disse TK, jogando o peso do corpo para um lado, relaxado. — Tu sumiu lá da boca.
Elias não respondeu de imediato, soltando uma longa nuvem de fumaça antes de desviar os olhos para o comparsa.
— Sumir? Só dei um tempo. Precisei pensar, só isso.
TK se sentou ao lado dele no meio-fio, os dois compartilhando o silêncio por alguns instantes. TK o observou, avaliando o humor de Elias.
— A rapaziada tá comentando sobre aquela reunião dos moradores. Falaram que o Matheus recebeu um bando deles e parece que foi... bem intenso.
Elias riu, mas não havia humor na risada.
— Intenso é pouco. Fizeram a caveira do irmão aqui e ele caiu na pilha. Deu bronca como se eu fosse moleque.
TK ergueu uma sobrancelha, surpreso.
— Isso mesmo? Ele veio pra cima de tu?
— Como se eu fosse ninguém, TK. — Elias apagou o cigarro no chão com raiva. — Esses moradores tão abusando, achando que mandam no morro. E o pior? O Matheus tá comprando o papo deles. Tá mole com a comunidade.
TK bufou e concordou com a cabeça.
— Eu já tinha reparado. Deixar os moradores reclamarem e opinarem assim é fogo, Elias. Tá tudo invertido. Esse negócio de "comandar com respeito" só dá problema. Os cara precisam é de pulso firme, mostrar quem é que manda.
Elias olhou para TK, a raiva em seus olhos agora dividida com um brilho calculista.
— Eu tava pensando isso mesmo. Não dá pra gente baixar a cabeça pra essas coisas. Esse morro só vai respeitar quem mostrar força. E o Matheus… — Elias parou, dando de ombros. — Ele tá achando que é político, não traficante.
TK concordou, com um sorriso amargo.
— Se ele continuar assim, vão passar por cima.
Elias balançou a cabeça, lentamente, absorvendo as palavras. Ele sabia que o momento de agir estava próximo. Não apenas contra Matheus, mas também contra aqueles que, em sua visão, estavam enfraquecendo o comando do morro.
— É, TK. A gente vai ter que corrigir umas coisas por aqui.
Elias não deixou aquele sentimento o consumir de imediato. Aprendera desde cedo que tudo no morro precisava ser calculado, inclusive a traição. Por mais que estivesse furioso com Matheus, sabia que não podia se levantar contra ele diretamente. Matheus era o herdeiro de Zé Preto, e o respeito que a comunidade tinha por ele fazia disso um terreno delicado.
Mas Elias não estava sozinho. TK era o primeiro, mas não seria o último a notar a fragilidade na liderança de Matheus. Ao se levantar, bateu a poeira da roupa e olhou para TK com firmeza.
— Escuta, a gente não vai agir por impulso. Primeiro, eu quero saber quem são os leal mesmo a mim e quem tá bajulando o Matheuzinho.
TK coçou a cabeça, pensando rápido.
— Tem uma galera que te admira, Elias. Os que reclamam que o Matheus tá muito “bonzinho” são os primeiros a te escutar. É só a gente plantar a dúvida.
Elias sorriu de canto, um sorriso frio.
— Isso. A gente não precisa derrubar ele agora. Só mostrar que o jeito dele não tá funcionando. Os moradores reclamaram de mim, né? Vamos ver quanto tempo demora pra começar a reclamar dele também.
Eles seguiram pela viela, cada um com os pensamentos ocupados. Elias sabia que se jogar diretamente contra Matheus poderia ser desastroso, mas também sabia que, se ganhasse o apoio da base, poderia fazer um movimento certeiro sem se queimar no processo.
Matheus permanecia atento ao que acontecia no morro. Ele ainda confiava em Elias, mas não era burro. Sabia que o temperamento do amigo às vezes criava mais problemas do que soluções. Sentado na varanda de sua casa improvisada no topo do morro, observava as luzes da cidade ao longe enquanto ouvia as batidas de um samba vindo de algum canto próximo.
Lara surgiu, carregando um caderno e uma sacola de pão.
— Trouxe o que pediu — disse ela, interrompendo os pensamentos dele.
Ele sorriu para ela, um sorriso sincero que raramente mostrava para os outros.
— Valeu, Lara. Você tá ajudando demais.
Ela balançou a cabeça, recusando o elogio.
— Só faço o que acho certo. Você tá cuidando da comunidade e tem muito trabalho nas costas. Alguém precisa cuidar das pequenas coisas.
Matheus riu baixinho.
— Pequenas coisas? Essas coisas seguram muita coisa aqui. Sem gente como você, a gente não anda.
Ela o olhou, desarmada, mas não respondeu. Em vez disso, deixou o caderno e a sacola ao lado dele e se virou para ir embora. Antes de desaparecer pela escada, olhou por cima do ombro.
— Só espero que você continue sendo quem é, Matheus. Não deixe o poder te transformar.
As palavras dela ficaram na mente dele, mesmo muito tempo depois que ela foi embora. Ele sabia que o peso das decisões aumentava a cada dia. Também sabia que, cedo ou tarde, precisaria testar a lealdade de Elias.