O laboratório de química às nove da manhã parecia um castigo divino. Luz fria, cheiro de álcool e vidro limpo, e uma pilha de anotações que eu ainda não tinha revisado direito. A professora Lúcia andava de um lado pro outro, repassando as diretrizes do projeto, enquanto a maioria dos alunos fingia prestar atenção e, na verdade, só queria que tudo acabasse logo.
Eu estava sentada na bancada quatro. À minha esquerda, Theo. O novo. Nerd. Óculos redondos e camiseta do Radiohead. Um dos poucos que realmente parecia gostar de química.
— Você dormiu pouco também ou sempre tem esse olhar de "vou morrer aos poucos"? — ele perguntou, sem levantar os olhos do caderno.
— Dormi pouco, estudei menos, e ainda fui numa festa ontem — respondi. — Tudo em nome da decadência universitária.
— Impressionante. Ainda parece mais viva do que metade da turma.
— Eu funciono à base de sarcasmo e cafeína.
Ele riu — baixo, rápido, mas genuíno.
Theo era estranho no melhor sentido. Quieto, mas afiado. Observador. E tinha uma forma de falar que parecia ensaiada, mas não era. Como se cada frase fosse uma linha de roteiro de algum filme cult que só ele entendia.
— Então... você e o Jace, né? — ele perguntou depois de um tempo, enquanto colocávamos os óculos de p******o.
— É — respondi, tentando soar casual.
— Ele é o oposto de você.
— Uhum.
— Isso te atrai?
— Isso me desafia.
Theo assentiu, como se aquilo fizesse todo sentido.
— Acho interessante. Tipo reações instáveis. Às vezes dá certo. Às vezes explode o laboratório.
— A metáfora foi bonita. E também assustadora.
— Eu tento.
Começamos o experimento com Kayla e Liv na bancada de trás, as risadinhas disfarçadas se misturando com o som dos b***s de Bunsen sendo ligados. Ignorei. Ou tentei.
— Ela tá te olhando desde que entrou na sala — Theo disse, enquanto mexia nos tubos de ensaio.
— Eu sei. É o superpoder dela: passivo-agressividade.
— Você quer que eu derrube ácido no jaleco dela?
Arregalei os olhos. Ele deu um sorrisinho.
— Brincadeira. Mais ou menos.
— Você é mais sombrio do que parece.
— Eu só finjo ser funcional. Por dentro sou caos puro.
— Então você e Jace têm mais em comum do que imagina.
— Mas eu não ando de moto nem bato em gente por impulso.
— Ele não bate mais. Em gente.
— Isso foi reconfortante.
Rimos de novo. E pela primeira vez desde que entrei no laboratório, senti que talvez aquilo não fosse só mais uma obrigação da faculdade. Talvez fosse o começo de uma coisa boa.
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Na hora do intervalo, saímos juntos para o pátio. O sol aparecia entre as nuvens, tímido, mas ainda assim bem-vindo. Theo tirou os óculos por um segundo e massageou as têmporas.
— Você devia fazer isso mais vezes.
— O quê?
— Ficar ao ar livre. Parar de pensar tanto.
— Uau, você me analisou em três aulas e duas conversas?
— Eu sou bom em observar. E você vive tensa como se estivesse prestes a desabar e fingindo que tá tudo bem.
— Isso foi... direto.
— Eu sou assim. Mas, ó — ele me entregou uma barrinha de cereal do bolso — isso ajuda. Açúcar resolve 40% dos problemas emocionais.
— E os outros 60%?
— A gente ignora até sumirem.
Aceitei a barrinha e dei uma mordida.
— Obrigada, doutor Phil universitário.
— De nada, rainha do controle emocional.
Ficamos sentados no banco de madeira por alguns minutos em silêncio. Um silêncio confortável.
— Sabe o que eu acho? — ele disse, jogando a cabeça pra trás e fechando os olhos sob o sol fraco.
— Que o mundo é uma equação m*l resolvida?
— Também. Mas acho que você não sabe o tamanho da sua força. E isso te impede de usá-la.
Virei o rosto devagar, encarando o perfil dele. Sério, tranquilo, quase impenetrável.
— Por que você tá sendo legal comigo?
— Porque eu gosto de gente que é real. E você é. Mesmo quando finge não ser.
— E você? É real?
— Eu sou só esquisito. E um pouco solitário. Mas real até o osso.
Assenti devagar.
— Obrigada, Theo.
— Só não se assusta se eu te mandar memes existencialistas às três da manhã.
— Manda. Eu gosto de rir do vazio da vida.
Ele sorriu, e por um segundo, parecia que o mundo desacelerava ali também.
Talvez o caos não fosse só Jace.
Talvez... eu também precisasse de lugares calmos onde pudesse ser só eu. E Theo estava ali. Presente. Silencioso. E, de alguma forma, necessário.