Ele continua de cara fechada e eu quase ri, quase. Mas me segurei e menti. Claro, eu teria que me acostumar com isso agora, afinal minha vida tornou-se uma mentira ambulante.
- Não passa nem perto disso. - Eu ri e eles também. - Muito pelo contrário.
- Eu sabia! - Kyara pula de alegria - Me deve cinquentinha amado. - Ela fala com o Joel. Mais essa, quando tudo isso acabar, tenho que me lembrar de pagar os cinquenta reais para ele.
- Então eu to perdoada?
- Claro que está! - Os dois respondem e me abraçam.
- Tudo está muito lindo por aqui, mas se me derem licença eu tenho uma aula para dar. - O professor nos interrompe e entre risadas nós entramos na sala. Afinal de contas, o papo dava pra por em dia outra hora.
Seguimos a aula inteira no modo estudantes, a disciplina não era moleza e dava medo até piscar os olhos e perder alguma coisa. Quando finalmente a aula terminou eu estava atolada de trabalho para a próxima aula e com um sinal de enxaqueca.
- O Thomas um dia ainda mata a gente.
- Coisa vai ser se a gente perder na disciplina, ouvi dizer que ele está saindo para o PhD e o professor Diógenes vai assumir a disciplina.
Ah, só de ouvir esse nome a enxaqueca piorou. Diógenes é o pior professor que existe, quase perco na sua disciplina e olha que não era das mais difíceis, essa é dez vezes mais complexas, se pegá-la com o Diógenes ir apenas para as finais seria um alivio.
- Mas acho que não chego a repetir, pelo menos agora que eu estou com tempo livre, vou poder estudar.
- Ai amiga, eu estou com tanta inveja de você. A revista está sugando todo o meu tempo.
Reviro os olhos, ela trabalha na sua área, faz o que gosta, e quando sair da faculdade já estará com o emprego na mão. Enquanto eu...
- Não imagina como eu tenho de você.
Enquanto isso Joel nos encarava com cara de tédio.
- Que chatas vocês. Acabamos de passar quase cinco horas ouvindo o chato do Thomas falar sem parar e vocês não dão um descanso? Que tal a gente marcar de sair um dia desses.
- Não sei não Joel, eu estou atolada de trabalho e sem tempo pra nada.
- Arruma um jeito.
- A gente poderia marcar de estudar juntos para o seminário do Thomas esse fim de semana lá em casa, e depois poderíamos jogar Just Dance no Xbox.
- Ah, mas é que agora a Lara tem casa! - Joel engraçadinho...
- Engraçadinho... Então, topa ou não topa?
- Não sei, ainda tenho esperança de encontrar a maleta de um milhão.
Não aguentamos e começamos a rir com a referência do antigo programa do SBT. Joel também não deixa passar uma.
Deixamos tudo combinado para o sábado a tarde e eu fui para casa. Na porta do meu edifício, tinha mais gente, e dessa vez eles não estavam apenas me olhando não, estavam me xingando mesmo, por "roubar" o Rafael delas. Deixei passar, afinal duvido que pelo menos uma delas seja maior de idade.
Depois de dez minutos que havia entrado no apartamento, eu estava deitada, de pijama e tudo. Olhava para o teto do meu quarto, pensando que apesar de tudo, eu poderia me acostumar. Claro que hoje foi difícil, já que foi meu primeiro dia com tantas ofensas, mas se eu parar para analisar, não é bicho de sete cabeças no final das contas. Dá para me acostumar com o fato de que eu não sou a mais amada do mundo.
Tentei dormir mas não conseguir, então peguei meu celular e fui dar uma olhada no meu i********:. A foto que eu havia tirado com a Paola no shopping hoje, já estava com milhares de likes. E nos vastos comentários, tinha muita gente dizendo que eu era linda, e que estava mais do que claro o porquê do interesse do Rafael. Haviam os comentários ofensivos, claro, mas eles sempre existiriam, independentemente do que eu fizesse. Por isso eu decidi ignorar. Olhando as fotos das pessoas que eu sigo, vi uma do Rafael que me fez sorrir.
Ele estava olhando para o celular que continha uma foto minha. Seu olhar estava distante e parecia realmente condizente com a legenda.
"Me deu uma saudade de acordar vendo esse sorriso..." E adicionou um coraçãozinho e uma carinha de tristeza. Não precisa me dizer, eu sei que aquilo é apenas parte do papel. Sei que ele não está fazendo isso por que realmente sente falta de mim, apesar de que eu sinto muita falta dele, mesmo não tendo passado tanto tempo assim ao seu lado. Aquele dia, apesar de ter sido o único, foi importante para mim. E agora vendo essa foto e essa legenda, eu me sinto muito mais feliz do que eu achei que sentiria em um dia como hoje. Afinal, em um dia de tantas ofensas, ver uma "declaração" dessa, ainda que no i********:, fez com que eu me sentisse, sei lá. Especial. De repente chega uma mensagem no meu celular.
"Liga o Skype" Estranhei aquilo, principalmente sendo de um numero que não conheço, mas o que posso dizer? Sou uma pessoa curiosa.
Levantei da cama, peguei meu notebook, e liguei o Skype. Nem acreditei quando vi o Rafael na tela. Ele estava sentado em uma cama assim como eu, mas ao invés de pijama, ele estava sem camisa. Não é novidade, homens geralmente dormem assim. Seu cabelo estava um pouco bagunçado e seu sorriso era o mais belo acessório de seu rosto.
- Ah oi.
- Você cumpre as ordens de um desconhecido sem nem mesmo saber quem ele é? - Ele pergunta divertido.
- Se eu soubesse quem ele era, não seria um desconhecido não é mesmo?
Ele ri, e confesso que senti falta da sua risada.
- Olha, essa semana inteira eu to com a agenda cheia, e na semana que vem também. Mas vou ter folga de domingo a oito. Queria que você conhecesse minha família.
Meu corpo tenciona-se rapidamente. Lembrei sobre o fato de que a família dele não sabe do seu segredo e que terei que fingir o tempo todo. Não sei se serei capaz de me fazer de apaixonada todo o tempo...
- Tenho a opção de dizer não?
Ele faz uma cara triste, e não parece estar fingindo ou tentando ser dramático. Uma pergunta que para um casal de namorados normais seria simpática e divertida, para um "casal" como o nós, soa como: Sou obrigada a isso também? E já percebi que ele não se sente a vontade com essa situação.
- Você sempre vai ter essa opção Lara.
Me dá uma raivinha de mim mesma, por ter tirado aquele sorriso do rosto dele, mas não conseguir evitar. Segurei-me para não lhe dizer que não, nunca tenho opção quando se trata do nosso "relacionamento". Mas não poderia dizer isso a ele, mesmo que isso seja de conhecimento de ambos, não preciso ficar colhendo inimizade, nem o tratando de maneira frigida e profissional, quando podemos ser mais que isso, afinal no contrato não diz nada sobre não podermos ser amigos. Ele suspira, e coça a parte de trás de sua cabeça. Agora, sem aquele sorriso lindo de acessório, ele me parece muito cansado, olhando no relógio percebo que já passa de uma da manhã. Seus olhos já contêm bolsas levemente escurecidas, e pelo seu olhar da para perceber que não tem dormido muito bem.
- O que eu estou querendo dizer, Lara, é que é obvio que uma hora você terá que conhecer meus pais e minha irmã, só não é necessário que seja no dia e horário que eu estou propondo. Se você ainda não se sente confortável para dar qualquer passo que seja, não é obrigada a dar, quero que saiba disso.
Eu não respondo nada, e por um momento percebo seu olhar meio perdido. Daria qualquer coisa para saber o rumo que seus pensamentos tomaram, mas pela sua expressão a única dica que eu tenho é que foi para longe, muito longe.
- Aquele contrato que você assinou - Ele prossegue após algum tempo - É mais frio do que eu gostaria que fosse e acredite que eu gostaria de ter a opção de fazer com que ele não exista. Mas não tenho. Quero que saiba, que eu não sou frio como aquele contrato, tão pouco como as pessoas que te pediram para assinar, comigo você sempre terá a opção de dizer não. E eu repito sempre.
Ouço tudo que ele diz sem saber o que dizer depois. Será que é verdade tudo que ele está dizendo? Será que eu tenho opções dentro desse relacionamento? Olho para Rafael que me olha pacientemente, esperando minha resposta. Em seu rosto não há indícios de impaciência, nem mesmo de ansiedade. Por um momento me envergonho da minha rispidez com ele, desde o momento que o conheci, ele nunca me olhou nem me tratou como uma prestadora de serviços, como alguém a quem ele tem que aturar graças a um contrato, nunca conviveu comigo de maneira estritamente profissional, pelo contrário, ele estava o tempo inteiro tentando fazer-me sentir o mais confortável que a situação permitia, tentando ser meu amigo e agir como tal, percebo que hoje quando ele sugeriu que fossemos até a casa de seus pais, ele apenas perguntou, eu assinei um contrato que dizia que teria que estar a sua disposição quando ele precisasse de mim, mas ele não me ordenou, ele perguntou. Ele está o tempo inteiro me tratando como amiga e eu estou o tempo inteiro colocando-me no lugar de funcionaria.
Só então percebo que ele ficou esperando minha resposta e eu demorei uma eternidade para responder, tento colocar um sorriso no meu rosto, e responder pelo menos uma vez, da forma que ele merece.
- Me desculpa, é claro que eu vou conhecer seus pais. Na verdade, agora eu fiquei curiosa, devem ser pessoas maravilhosas para terem te criado tão bem.
Acertei. O sorriso voltou ao seu rosto e aquela expressão de cansado se abrandou um pouco.
- Tem certeza?
- Claro, até porque uma hora eu terei de conhecê-los, e não é como se fosse um sacrifício.
- Você é uma ótima atriz, Lara - Um sorriso amarelo surge em seu rosto - E eu realmente acreditaria no que você disse se eu não soubesse que tudo o que está acontecendo aqui, é um sacrifício pra você.
Percebi que odeio isso, que odeio quando ele fica desanimado e odeio mais ainda o fato de ser o motivo para o seu desânimo.
- Acredite Rafael, você faz esse sacrifício ser bem mais fácil. Muito mais fácil do que eu imaginei que seria.
Agora sim, esse é o sorriso que eu gosto de ver em seu rosto. O sorriso que, inconscientemente, eu vivo tirando.