Capítulo 07

2526 Words
Muralha narrando Eu saí do morro com o corpo inteiro tensionado, cada músculo meu parecia pedir pra explodir em alguém. O volante do carro quase rangia na minha mão, de tanto que eu apertava. A verdade é que eu tava puto. Puto com o Coringa, lógico, mas também puto com o Lobo. Porque ele pode ter me passado o papo, ter me dado o toque, ter me mostrado as entrelinhas sem querer apontar o dedo direto. Mas, p***a, pra mim não tem entrelinha. Eu gosto de clareza. Gosto de lealdade nua e crua, sem curva, sem meio termo. E principalmente gosto de lealdade comigo, com a p***a do comando, com a bandeira vermelha que ele carrega estampada no peito e jurou por ela. O Lobo, do jeito torto dele, foi leal ao amigo. Talvez por promessa antiga, talvez por aquele peso de quem cresceu junto, dividiu marmita, jogou bola no mesmo campinho de barro. Mas f**a-se. Eu não tô nem aí pra amizade deles. Aqui é crime, aqui é organização. E o Lobo vai ter que escolher o lado dele, mais cedo ou mais tarde, porque eu vou começar a apertar o Coringa. Vou começar a ficar mais em cima, vasculhar cada canto dessa favela, cada cifra, cada fluxo, e quando o cerco fechar, não vai ter pra onde nenhum dos dois correr. E eu sei. Sei que o Lobo é leal. Mas o problema é que o tipo de lealdade dele tem limite. Porque a honestidade dele — ainda que num mundo tão errado quanto o nosso — vai gritar. O caráter dele vai falar mais alto, a honra vai berrar no ouvido dele até ficar insuportável. Vai ter coisa que ele não vai aguentar ver. E já não tá aguentando, ficou escancarado hoje. Quando aquela Bárbara passou, toda fodida, o olho meio molhado, o corpo duro tentando segurar o choro. Eu saquei na hora que tinha algum bagulho envolvendo ela. Todo mundo conhece a Bárbara, grande professora, orgulho do morro. Se o Lobo chegou pra mim hoje com esse papo atravessado, é porque tem caô envolvendo essa mulher. Pode até não ter me falado diretamente, mas a cara dele dizia tudo. Quando cheguei na minha cobertura, eu larguei tudo. Fui direto pro banheiro, arranquei a camisa, tirei o tênis e entrei debaixo do chuveiro. A água quente escorrendo pelas costas foi a única coisa que me fez respirar um pouco mais fundo. Mas o alívio era raso, não durava nada. Porque minha cabeça continuava fervendo, arquitetando tudo, calculando cada passo, cada brecha que eu ia encontrar pra esmagar o Coringa no momento certo. Saí do banho ainda pingando, enrolei a toalha na cintura e fui até a varanda. A vista dali era absurda, pegava boa parte da cidade. Eu ficava ali olhando pro movimento lá embaixo, pros carros passando, pras luzes que iam se acendendo, pras pessoas correndo com suas vidinhas miseráveis, e só conseguia pensar em como tudo isso era pequeno perto do peso que eu carregava nas costas. Acendi um charuto. O gosto forte invadiu minha boca, queimou minha garganta e me deu aquela sensação quase anestésica que eu tanto buscava. Ali, enrolado na toalha, com a fumaça rodando em volta de mim, sozinho no meu silêncio, era onde eu mais me sentia no controle. A minha casa era só minha. Minha empregada já tinha ido embora, não tinha barulho de voz, de copo, de passo. Só o som distante da cidade respirando e o meu próprio coração batendo pesado. Era nesses momentos que eu arquitetava tudo, do jeito mais minucioso, do mais c***l, na visão de alguns. Mas na minha? Era só justiça. Ordem. O que meu pai me ensinou. Foi então que o celular vibrou. Mensagem curta, vinda de um parceiro meu, um dos que organiza as paradas mais cabulosas do submundo. “Hoje tem luta clandestina. Mista. Vai ter sangue. Quer o endereço?” Eu nem pensei duas vezes. Hoje, tudo que meu corpo e minha cabeça precisavam era disso: sangue. Ver sangue correndo, ver alguém se fodendo, ouvir o barulho de osso rachando. Era o único alívio real que eu conhecia. Porque, se dependesse do que tava entalado no meu peito, eu mesmo ia ter que meter a mão e fazer sangue escorrer, só pra não enlouquecer. Respondi na hora, pedi o endereço e já comecei a me arrumar. Me vesti com aquela calma de sempre, pegando a camisa preta social, bem alinhada, o relógio grosso no pulso, perfume marcante. Não importa pra onde eu vá, eu sempre ando bem. Meu pai me dizia que até pra matar homem tem que estar apresentável, porque a postura impõe respeito antes mesmo do cano do fuzil. Quando terminei, desci as escadas tranquilo, a arma já acomodada no coldre, o celular no bolso. A casa em silêncio absoluto, só o som dos meus passos ecoando pelo mármore. Entrei no meu Jeep blindado, fechei a porta com força e pedi pro motorista partir. O caminho foi todo calado, só eu e meus pensamentos sombrios. Eu olhava pela janela, vendo o Rio passar como um borrão, e o meu sangue latejava num ritmo que pedia violência. Eu precisava daquele ambiente hoje. Precisava daquela p***a de luta clandestina pra soltar a b***a que mora dentro de mim sem que ninguém tivesse coragem de me apontar o dedo depois. Porque ali, todo mundo tava em busca do mesmo: sangue. Uns pra ganhar, outros pra gozar, outros pra esquecer da própria miséria. E eu? Eu só queria assistir. De perto. Sentir o cheiro do suor, o gosto metálico do sangue no ar. Porque era isso que me mantinha vivo, era isso que me fazia continuar carregando o legado do meu pai, com cada tijolo de morte e poder empilhado na minha conta. Hoje ia ter estreante. E geralmente, geral aposta contra os estreantes, porque é divertido ver a ilusão deles se despedaçar. E eu, sinceramente, tava torcendo pra isso. Porque hoje, tudo que eu queria era ver alguém sangrar pra me lembrar do porquê eu tô vivo. O carro foi reduzindo a velocidade até parar diante de um galpão escuro, com as paredes todas pichadas e manchas antigas que pareciam sangue, ou ferrugem, ou os dois misturados. O portão de ferro tava semiaberto, só o suficiente pra dar passagem a quem tivesse autorização. E ali, entrada por entrada, o clima já era outro — cheiro forte de cigarro barato, cerveja choca, gente falando alto, apostas rolando. Era um ambiente tão carregado de energia r**m que parecia pulsar no chão, vibrando direto pra sola do meu sapato. Assim que eu desci do carro, o motorista nem precisou de ordem. Já manobrou e sumiu, deixando o meu carro estacionado na lateral, do jeito que sempre fazia. Dei meus primeiros passos em direção ao galpão e senti o peso dos olhares. Era como se a atmosfera inteira do lugar mudasse. A música alta não disfarçava o silêncio que se espalhava em ondas pelas rodas de conversa, pela fila do bar improvisado, pelos cantos onde tinha n**o fumando maconha e cheirando pó em cima de caixa de som. Ninguém ria mais alto. Ninguém ousava me cumprimentar com aquela camaradagem falsa que tanto gostam de exibir pra cima de chefete de boca. Porque ali não era qualquer frente de morro chegando pra ostentar. Era eu. Muralha. O filho do homem que construiu metade daquele império e que, mesmo morto, ainda botava medo em quem não sabia nem da missa a metade. E eu? Eu era a continuação direta desse legado. O peso do meu nome arrastava respeito, temor e submissão. Não precisava abrir a boca pra ser reconhecido. Não precisava sorrir, nem cumprimentar ninguém — e não faria isso mesmo. Meu semblante era o mesmo de sempre: sério, duro, sem ousadia, sem carisma pra agradar quem não me interessava. Entrei no galpão com a postura ereta, a camisa bem alinhada no corpo, as correntes discretas no pescoço e o relógio no pulso brilhando sob as luzes coloridas que piscavam como se zombassem da miséria que se exibia ali. Todo o lugar era um antro de podridão: chão sujo, cheiro de ferrugem, apostas gritadas, notas trocando de mão em mão, gente rindo alto demais tentando fingir coragem. Mas na minha passagem, o som parecia baixar. Era quase engraçado ver os caras se encolhendo, tirando o chapéu, desviando o olhar ou até dando passinhos pra trás. — Opa, chefe… — um deles tentou um sorriso torto, ajeitando o boné, mas eu só passei direto, como se ele fosse ar. Não precisava gastar palavra nem gesto com quem não tinha peso nenhum. Fui indo até onde o ringue improvisado tava montado. Uma estrutura feia, cercada por grades velhas amarradas com corrente. O chão tava manchado de sangue fresco. Literalmente. Ainda escorria um filete, pingando de algum ponto que não quis nem procurar. O cheiro era inconfundível, ferruginoso, doce e enjoativo. A plateia ao redor vibrava, mas meio contida com a minha presença. Eu sentia o ambiente respirar diferente, como se todo mundo ali fosse obrigado a lembrar que, apesar de parecerem donos da própria diversão, quem mandava naquela p***a de submundo era eu. Cheguei perto da grade e encostei só dois dedos, observando sem pressa. Ninguém se atrevia a chegar perto demais. Até o gerente do lugar, que já me conhecia de outros eventos, veio falar comigo de cabeça baixa, os ombros tensos. — Boa noite, Muralha. Quer uma mesa lá em cima, chefe? Ou prefere ficar por aqui, perto da ação? Eu olhei pra ele com o semblante mais frio que podia, sem mexer um músculo do rosto. — Aqui tá bom. — respondi, seco, só pra estabelecer que não queria mais diálogo. Ele deu dois passos pra trás quase tropeçando, fez um aceno com a cabeça e sumiu no meio do povo. Eu permaneci ali, o corpo relaxado mas o olhar atento, passando por cada rosto, analisando cada detalhe, como meu pai sempre me ensinou. A pista de quem se acovarda, de quem tá planejando alguma coisa, de quem tá desconfortável demais é sempre sutil, mas o medo verdadeiro não consegue se disfarçar. E ali, eu via nos olhos deles. Cada um sabia exatamente o peso da minha presença. E o que eu buscava ali era simples. Sangue. Aquele sangue que escorreria dali ia me servir como válvula, como anestesia momentânea pra toda a raiva que eu carregava do Coringa, do Lobo e até das próprias circunstâncias. Porque, no fim das contas, minha vida era isso: ver o medo nos olhos dos outros, sentir o cheiro do sangue que me lembrava do homem que me criou, e garantir que o nome dele — o meu nome — continuasse sendo temido por todo maldito centímetro dessa cidade. Eu me recostei levemente contra a grade, coloquei as mãos nos bolsos e deixei só o olhar vivo, atento, varrendo o ringue e o entorno, pronto pra ver o show começar. Porque hoje, mais do que nunca, eu precisava ver alguém ser destruído. E não por crueldade gratuita. Mas pra lembrar a mim mesmo que ainda era o dono dessa p***a toda. Que quem sangrava, quem caía, nunca era eu. Eu tava ali, encostado na grade, os olhos fixos no centro daquele ringue improvisado, o corpo tranquilo mas por dentro fervendo, esperando só o próximo nome ser chamado, quando ouvi o anúncio ecoar pelos alto-falantes podres. A voz do locutor era rouca, forçada demais pra parecer animada, mas o que ele disse fez meu peito travar no mesmo segundo. — Próxima luta da noite! Estreante, a morena sinistra que ninguém segura: Bárbara! Foi como se o chão tivesse cedido um centímetro. Eu pisquei, virei o pescoço na direção de onde ela surgia e, por um instante, achei que minha cabeça tava pregando peça. Mas não. Era ela mesmo. A Bárbara. Trançada, com o short colado, o top preto, a faixa vermelha nas mãos, e o olhar focado, duro, que eu já tinha visto várias vezes quando cruzava com ela pelos becos do morro. Só que ver ela ali, dentro daquele galpão imundo, pronta pra entrar num ringue clandestino, me deixou completamente desacreditado. Meu coração bateu tão forte que eu senti o pulso latejar no pescoço. E junto com isso, veio a lembrança do papo do Lobo mais cedo. As palavras dele ecoaram na minha cabeça de um jeito irritante, martelando sem parar: “Fica mais atento, Muralha. Tem coisa errada acontecendo, coisa que não bate com o que devia…” Caralho. Era dela que ele tava falando. Tinha que ser. Não fazia sentido ser de outra pessoa. O incômodo dele, a hesitação pra abrir o jogo por completo, tudo agora fazia um sentido doentio que me deixou ainda mais puto. E foi só eu pensar isso que os olhos dela encontraram os meus. Por um segundo longo demais pra ser normal, a gente ficou se encarando no meio daquele caos todo. O povo gritava, apostava, empurrava, mas o som parecia ficar longe, abafado, como se eu e ela estivéssemos num espaço isolado só nosso. A expressão dela não mudou. Nem medo, nem surpresa, nem nada. Só aquela firmeza absurda, quase desafiadora, de quem não ia abaixar a cabeça pra p***a nenhuma. E foi isso que me pegou. Porque eu senti um aperto fodido no peito, algo que eu não tava acostumado a sentir. Algo que não era raiva, não era sede de sangue, não era desprezo. Era um receio que eu não consegui entender e que me deixou ainda mais nervoso. Ela quebrou o contato primeiro, ajeitou o protetor bucal e continuou andando, seguindo o cara que indicava a entrada do ringue. Subiu pela escada enferrujada sem olhar pra trás. Cada passo dela parecia me enfiar uma estaca mais fundo no peito. Eu travei o maxilar, senti a mandíbula até doer. Não fazia sentido. Eu não me importava com nada disso. Não era problema meu se uma mulher do morro queria se arriscar num ringue clandestino. Eu não era pai, não era marido, não era amigo. Mas o c*****o é que, por alguma razão que eu não conseguia explicar, aquilo me incomodava num nível que quase me fazia querer invadir aquela merda de ringue e tirar ela de lá à força. Passei a mão no rosto, fritei o olhar no chão por um segundo, tentando recompor o fôlego, mas não adiantou. Quando voltei a encarar o centro da arena, ela já tava lá dentro, batendo de leve as mãos com as faixas, girando o pescoço, respirando fundo, pronta pra luta. E eu? Eu tava tenso. Totalmente, completamente tenso, sem sequer entender o porquê. Como se tivesse algo errado não só no cenário, mas dentro de mim também. Engoli em seco, afundei as mãos nos bolsos, me obriguei a ficar ali, parado, observando, como se fosse só mais um espectador. Mas por dentro, meu estômago revirava. Porque uma parte minha já sabia: aquela p***a de noite não ia sair da minha cabeça tão cedo. E que, gostando ou não, a Bárbara tinha acabado de entrar de vez no meu radar e eu ia descobrir exatamente o que tinha acontecido pra ela parar ali, custasse o que custasse.
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