Capítulo 3

2624 Words
Estava sentada na minha cama, dando uma folheada no álbum de fotografias que havia levado comigo. Havia várias fotos ali: eu com meus avós, com minha mãe, alguns primos e tios. Achei que poderia m***r um pouco da saudade se pudesse olhar sempre para seus rostos. Lá fora a chuva caía fraca, nada comparado com o que achamos que seria. O céu ainda estava escuro como se fosse cair uma tempestade, mas a chuva, além de ter demorado horas para cair depois que tudo aconteceu, veio pouca. Eu demorei mais ou menos meia hora para organizar todas as minhas coisas, olhando pela janela o tempo todo, esperando a chuva que o céu tinha anunciado. Mas ela demorou a vir e, quando veio, fez eu me perguntar o que havia de errado com o tempo. Como o céu poderia estar carregado daquele jeito e praticamente sem chuva? - Olha isso – Sophie disse do canto do quarto. Ela estava sentada no sofá, assistindo TV – O tempo só ficou assim aqui nessa região. Em nenhum outro lugar aconteceu isso. Levantei da cama e fui dar uma olhada na TV, curiosa. Passava uma reportagem mostrando diferentes pontos da cidade. Na maior parte deles, chovia fraco, como ali, só que com o céu aberto. Apenas algumas nuvens tampavam os raios de sol, assim como estava antes. - Isso é muito estranho – Sophie disse, tirando as palavras da minha boca. Fiquei escutando a meteorologista tentando explicar o que desencadeou isso, mas não prestei atenção por muito tempo. Clima não era comigo, e toda aquela lógica fazia minha cabeça doer. Mas, de qualquer forma, me convenci de que ela estava certa e que havia sido apenas algumas massas de ar.  Desde que tinha sentido aquela sensação mais cedo,  não conseguia pensar em outra coisa por muito tempo. Fiquei o que pareceu uma eternidade tentando achar uma explicação lógica para tudo aquilo. - Acho que deve ser o apocalipse – Sophie comentou enquanto mudava de canal. Olhei para ela, me perguntando se eu havia sido a única a sentir aquilo. Todos olharam para os três garotos também. Eles chegaram e tudo ficou estranho. Sabia que era só uma coincidência, mas... - Sophie... – resolvi perguntar logo, a curiosidade estava me matando. - Oi – ela me olhou. Por um momento, hesitei. - Aqueles garotos novos... – continuei – Você sentiu algo em relação a eles? Ela enrugou a testa, pensando na minha pergunta. - Você está falando dos três garotos gatos que chegaram quando tudo ficou doido? – ela fez um gesto em direção à janela, indicando o tempo. - Isso – eu disse. Falando em voz alta, isso parecia ainda mais absurdo. Ela fez cara de quem estava concentrada. - Algo diferente, com certeza. Eles chamam atenção. Você viu como todos viraram para olhá-los assim que eles chegaram? – ela mordeu um pedaço da barra de chocolate que ela tinha na mão e voltou a olhar para a TV, desinteressada no assunto. Olhei pela janela novamente, para o céu.  - Por que está perguntando? – olhei para ela, que estava me encarando de volta – Tem algo errado? - Não – eu disse – Tudo certo. Vou tomar um banho. Me levantei da cama e fui até meu baú pegar uma peça de roupa. Quanto mais eu pensava nisso, mais eu me convencia de que eu tinha imaginado tudo.  Peguei uma toalha e me dirigi ao banheiro. Assim que tirei minha calça jeans, ouvi algo cair no chão. Era minha correntinha de ouro. Havia esquecido que tinha botado ela ali quando minha mãe tinha me entregado mais cedo. Peguei ela do chão e dei uma olhada no crucifixo de ouro. Não havia Jesus Cristo pregado na cruz, apenas a cruz com algumas pedras de brilhante. Girei ela nos dedos para dar uma olhada na parte de trás. Havia uma inscrição em latim. Sed libera nos a malo. Significava livrai-nos do m*l. Minha mãe havia me dado ela no meu último aniversário, dizendo que era para me proteger e que eu nunca deveria tirá-la. Ela tinha sido da minha mãe quando ela era mais jovem, que tinha ganhado da minha avó, que tinha ganhado do pai dela e assim sucessivamente. Estava na família havia anos e, de acordo com a tradição que surgiu não sei de onde, quem a possuísse teria que passar para o filho primogênito. Pendurei ela no meu pescoço novamente e entrei debaixo do chuveiro, tentando esquecer os três garotos estranhos. Quando saí do banheiro, Sophie estava dormindo no sofá, e um vento forte entrava pela janela. Desliguei a TV e joguei o cobertor em cima dela para que não passasse frio durante a noite. Então fui até a janela fechá-la. Parei um pouco e fiquei observando a vista pela primeira vez desde que havia chegado. A janela dava para o jardim entre o edifício principal e os dormitórios. Não havia ninguém por ali. Da janela, dava para ver um pedaço da floresta que rodeava a escola. Até onde eu conseguia ver, só havia árvores e mais árvores. Estava olhando a mesa de piquenique disposta perto da entrada da floresta quando um movimento me chamou atenção entre as árvores. Olhei assustada naquela direção, mas não tinha ninguém por ali. Um arrepio percorreu todo o meu corpo enquanto eu encarava as sombras atrás das árvores. Eu podia jurar que há apenas um segundo alguém tinha passado por ali. Olhei o relógio na cabeceira da cama de Sophie. Eram quase meia noite, e no dia seguinte tinha aula. Provavelmente todos já estavam dormindo. O que alguém faria lá essa hora e com o tempo desse jeito? Um vento forte soprou e jogou meus cabelos para trás. Os pelos dos meus braços se eriçaram, e eu gelei. De repente, tive uma vontade súbita de fechar a janela o mais rápido possível e trancá-la, me escondendo do que quer que pudesse me fazer m*l. Olhei mais uma vez para as árvores. A sensação que eu tinha era de que, fosse quem fosse, estava bem ali, entre as árvores, me observando enquanto eu não podia vê-lo. Embora provavelmente fosse apenas um aluno fujão que estava aprontando alguma, eu me sentia vulnerável e exposta. Fechei a janela rapidamente e a tranquei. Esperava não ter que passar por isso de novo. Ele, ou ela, tinha me deixado nervosa. - Adolescentes idiotas – eu resmunguei com raiva enquanto deitava na minha cama e apagava a luz do abajur. Antes de pegar no sono, cheguei à conclusão de que, definitivamente, eu não gostava nem um pouco daquele lugar. ... No dia seguinte, acordei com o som do despertador de Sophie indicando que já estava na hora de levantar e encarar seis horários de aula. Meu corpo estava cansado pelo fato de não ter conseguido dormir muito bem. Eu havia tido um pesadelo horroroso, e tudo o que eu queria era ficar na cama. Mas eu não tinha nenhuma escolha quanto a isso. Levantei resmungando e me dirigi ao banheiro, lembrando do sonho estranho que eu tinha tido. Eu estava em algum lugar escuro que eu não conseguia identificar, só podia sentir o chão abaixo de mim e nada mais. Havia um som de algo pingando em algum lugar, e eu tinha resolvido segui-lo. Quanto mais eu me aproximava do barulho, mais eu conseguia distinguir as coisas a minha volta. Eu estava em algo parecido com uma caverna, sozinha. Então virei em um túnel à direita, sabendo que eu encontraria a fonte do barulho logo ali. Um grito ficou preso na minha garganta quando descobri que se tratava de sangue. Sangue por todos os lados, escorrendo pela parede e pingando do teto, o cheiro metálico impregnando o ambiente... Tinha acordado assustada, pingando suor. Minhas mãos e todo o meu corpo tremiam convulsivamente. Não sabia porque o sonho tinha me afetado tanto, afinal era só um sonho r**m, mas não consegui pregar os olhos o resto da noite. Joguei água no rosto para ver se me despertava e me dava animo, mas não fez muito efeito. Eu ainda sentia meus olhos pesados e sonolentos. Tudo o que eu queria era voltar para cama e dormir. - Bom dia – Sophie disse, bocejando, enquanto passava por mim para entrar no banheiro. - Bom dia – respondi. Abri o baú com minhas roupas e procurei algo para usar. Peguei uma calça jeans clara e uma blusa preta com mangas longas. Muito provavelmente, o tempo ainda estava estranho. Deveria estar fazendo um pouco de frio lá fora. Botei a correntinha de ouro por dentro da blusa como de costume. Gostava de deixá-la o mais próximo possível do meu coração. Além disso, eu nãoão gostava das pessoas olhando e fazendo perguntas. Gostava de guardá-la apenas para mim mesma. - Você está com fome? – Sophie perguntou enquanto pegava a mochila e se dirigia até a porta. - Não muito – eu disse. - Vai querer comer assim que chegar no refeitório – ela abriu a porta para que eu pudesse passar – Aqui pode parecer uma prisão, mas a comida é ótima. Nos dirigimos ao elevador. Havia mais pessoas esperando por ele. Até chegar ao nosso andar foi um século, e para chegar no térreo foi um milênio inteiro. Ele parava o tempo todo, cada vez mais pessoas entrando. Eu não sabia quantos cabiam ali, mas chegou um momento em que a impressão era que ele iria despencar com tanto peso. Saí do elevador já resmungando comigo mesma da provável chuva que deveria estar caindo. Mas quando botei o pé do lado de fora, a luz do sol me atingiu com força. Olhei para o céu, perplexa. Ele estava exatamente como no dia anterior, no momento em que eu tinha chegado à escola. Apenas algumas nuvens brancas cobrindo parcialmente a luz do sol. Para onde tinha ido o céu tempestuoso de horas atrás? - Fala sério... – Sophie disse, olhando para o céu – Esse tempo está muito zoado. Assim como os outros, ela parou apenas por um tempo para olhar para cima e depois continuou seguindo em frente. Fui logo atrás dela. - Daqui a pouco vamos abrir os olhos e nos dar conta que estamos sendo devorados por um imenso furacão – ela comentava enquanto atravessávamos o hall de entrada e nos dirigíamos ao refeitório. Assim que chegamos ao refeitório, um grande espaço revestido em branco das paredes ao teto, o barulho de conversa preencheu meus ouvidos. Havia mais pessoas do que eu havia pensado em um primeiro momento. - Ali – Sophie apontou para a fila que se formava para pegar comida. Fui com ela até lá e peguei uma bandeja para colocar meu café da manhã. No meio do caminho, ela achou uma amiga, então elas começaram a conversar. - Bruna, essa aqui é Ágata, minha nova colega de quarto – ela nos apresentou. - Um prazer – a garota disse ao apertar minha mão com um grande sorriso no rosto. - Procure uma mesa para a gente sentar – Sophie disse para mim – Estamos indo logo atrás de você. Virei de costas e encarei o enorme refeitório à procura de uma mesa vazia. Parecia uma missão impossível. Por onde eu olhava, só conseguia ver mesas cheias de estudantes. Suspirei e fui até o fundo ver se encontrava alguma mesa por lá. Por sorte, achei duas mesas vazias e me sentei em uma delas. Não fazia a mínima ideia de como Sophie iria me achar no meio de tanta gente, mas esperei por ela. Não tinha nem começado a comer ainda quando aquela sensação de que algo estava por perto me preencheu. Levantei os olhos para a entrada do refeitório e comprovei minhas suspeitas. Ali estavam os três garotos estranhos de ontem. O burburinho de conversa diminuiu quando eles entraram. Todos, de alguma forma, sentiram sua presença. As pessoas viravam a cabeça e paravam de conversar só para vê-los. Estremeci e desviei o olhar. Como isso era possível? Tinha até me convencido de que havia sido coisa da minha cabeça, mas ali estava eu de novo, sentindo a mesma coisa, "coincidentemente" no mesmo instante em que eles cruzaram a porta. Eu já estava quase me convencendo de que talvez eu havia sido inimiga deles em uma possível vida passada quando Sophie chegou e se sentou à minha frente, sozinha. - Onde está sua amiga? – perguntei. - Foi falar com um pessoal – ela olhou desconfortável para trás e depois encarou sua bandeja com comida novamente. Pensei em perguntar o que havia de errado, mas não queria me intrometer na vida de ninguém. Se ela quisesse contar, do jeito que falava demais, ela contaria uma hora ou outra. - Lembra que você me perguntou se eu tinha sentido algo em relação aos três novatos? Levantei os olhos para ela, curiosa pelo que tinha a dizer. - Sim – respondi rapidamente. Eu não sabia exatamente onde eu queria chegar e o que eu queria provar, mas eu estava ansiando para que ela dissesse que também tinha sentido o que eu senti. Eu não queria ser a doida sozinha. - Bem... – ela continuou – Nem todos eles, mas o garoto dos olhos pretos... – ela olhou por cima do ombro por um segundo e depois voltou a olhar para mim – Ele me dá medo. - Te dá medo? – olhei por cima de sua cabeça, tentando localizá-lo no meio de todo mundo – Como assim? - Esbarrei com ele sem querer quando estava vindo para cá. Pedi desculpas e sorri educadamente, ele apenas me lançou um olhar frio e saiu andando – ela bebeu um gole de suco – Não que outras pessoas não tenham feito isso antes, o que não falta aqui é gente esnobe. Mas... Tem algo nos olhos dele... – encarei ela novamente quando ela parou, como se pensando que o que iria dizer em seguida fosse absurdo demais – De errado. Fiquei encarando ela por um tempo. - Errado como? – perguntei. - Sei lá... – ela deu de ombros e riu – Não é nada demais, ele só deve ter uma energia muito negativa – ela mordeu seu misto quente –Um conselho, fique longe dele. O cara parece ser barra pesada. Energia negativa... Estava pensando na minha avó e em como ela dizia que havia coisas no mundo que iam além da nossa compreensão quando a garota que estava conversando com Sophie chegou. - Sophie... – o tom de voz dela pareceu preocupado – Você viu a Vanessa em algum lugar por aí? - Não. Por quê? Ela se sentou desanimada ao lado de Sophie. - Ela desapareceu. - Como assim, desapareceu? – Sophie perguntou. - Pedro disse que eles tinham combinado de se encontrar meia noite na mesa de piquenique – ela explicava – Ele chegou cinco minutos atrasado, e ela não estava lá. Ficou esperando por dez minutos e resolveu ir atrás dela, mas não a achou em lugar algum. - O que? – Sophie largou seu misto, parecendo realmente preocupada agora – Como assim? Você acha que ela pode ter saído da escola? - Não sei, Sophie – ela parecia angustiada – Por que ela faria isso? - Não sei. Vocês já avisaram para a diretora? - Pedro está indo lá neste exato momento – ela começou a roer as unhas – Eu estou com medo. - Calma – Sophie passou o braço ao redor do ombro da garota – Vai ficar tudo bem, ela só deve ter resolvido sair um pouco para... A frase dela foi interrompida bruscamente, assim como todas as outras conversas ao redor, quando um som agudo e alto inundou o refeitório vindo de algum lugar do lado de fora. Alguém estava gritando.
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD