5 - DECO

1410 Words
CAPÍTULO 5 DECO NARRANDO Tem gente que olha pra mim hoje e só vê o cargo. A arma na cintura, o rádio que nunca fica mudo, os caras na contenção abrindo caminho quando eu passo. Enxergam o respeito, o medo, o silêncio que acompanha meu nome. Mas ninguém — ninguém mesmo — sabe o preço que eu paguei pra chegar aqui. Ser dono do morro nunca foi sonho. Não foi objetivo. Muito menos orgulho. Foi consequência. Da vida, do destino, da porrada que o mundo me deu desde cedo. Eu tentei caminhar pelo certo, tentei seguir a linha… mas parece que o maior lá de cima tinha outros planos pra mim. Ou talvez o morro tenha sido mais forte. Aqui, se você não vira predador, vira presa. E eu sempre tive pavor de ser caçado. Eu cresci num barraco onde o teto pingava mais que a torneira. Minha mãe dizia que Deus tinha dois favoritos: eu e a Diana. Se era verdade, Ele adorava testar a gente. Um dos dias mais difíceis da minha vida foi quando perdemos ela por causa de uma pneumonia que poderia ter sido tratada. A médica do posto dispensou, disse que era só gripe, que era frescura. E quando o quadro piorou, não sobrava mais tempo. Negligência mata mais que bala aqui em cima. Minha mãe foi a primeira a ir. O corpo dela estava ali, tão pequenininho, tão cansado… e eu não pude fazer nada além de segurar a mão dela até o último suspiro. Meu pai não aguentou viver sem ela. Mas não foi doença que levou ele. Meu pai saiu pra trabalhar num dia qualquer e nunca mais voltou. Não foi escolha… foi bala. Bala perdida. Bala maldita. Pegou ele na porta de casa, voltando da obra, com a marmita vazia ainda quente na mão. Os dois morreram num intervalo tão curto que parece que o universo quis arrancar de mim tudo de uma vez. A Diana tinha oito anos. Eu tinha quinze. E naquele minuto… eu virei homem à força. Sem preparo. Sem direito a escolha. Sem ninguém pra ensinar. Sobrou eu. Eu… e a Diana. E quando eu vi aquele rostinho miúdo, chorando em silêncio — porque ela já entendia a dor antes da hora — eu fiz uma promessa. Uma promessa que moldou tudo o que eu sou hoje. Nunca mais permitiria que algo acontecesse com ela. Nunca mais. Com quinze anos, virei tudo ao mesmo tempo: pai, irmão, amigo, protetor, trabalhador. Trabalhava de manhã, de tarde e de noite. Pedreiro. Servente. Ajudante de mercado. Entregador. O que aparecesse, eu fazia. Metade do dinheiro ia pra comida. A outra metade, eu guardava numa caixinha velha, enferrujada, escondida embaixo da cama, pra pagar a mensalidade da escola da Diana. O dia em que eu vendi meu videogame foi o mesmo dia em que comprei o uniforme novo dela. A felicidade foi simples: ela feliz com a roupa, eu feliz por poder proporcionar. Era raro, mas era real. Mas mesmo com todo esforço do mundo… não dava. Honesto, não dava. Não naquela realidade. Não com uma criança dependendo de mim pra viver. Foi aí… que o morro me puxou até o fundo. Popó — o chefe da época — me conhecia desde moleque. Ele sabia que eu era rápido, objetivo, calado. Sabia que eu tinha uma raiva guardada dentro do peito, uma raiva que não tinha pra onde ir. Um dia, ele me chamou num canto: — Anderson, tu trabalha igual condenado pra ganhar centavos. Vem pra cá. Aqui tu bota comida digna na mesa da tua irmã. Eu deveria ter dito “não”. Eu deveria ter virado as costas. Mas naquele mesmo dia, a Diana dormiu com fome. E aquilo me destruiu. Eu olhei pra ela, pra boca dela entreaberta, pro corpinho magrinho, pro cabelo bagunçado… e eu aceitei. Não porque eu queria. Mas porque eu precisava. Foi assim que eu entrei. Eu era o mais novo da equipe. Mas também era o mais dedicado. Nunca usei droga. Nunca bebi no serviço. Nunca vacilei. Nunca deixei emoção dominar minha cabeça. Popó sempre dizia: — Esse moleque é diferente. Esse vai longe. E eu fui. Com vinte e um anos, virei gerente. Com vinte e três, eu já fazia o morro andar quando o chefe sumia dois, três dias no vício. Com vinte e quatro, era a mim que chamavam sempre que o caldo entornava. E quando o Popó caiu — numa operação que ele mesmo vacilou a facção precisou decidir. E decidiu o óbvio: — Deco assume. Simples assim. Mas nada foi simples. Assumir o morro significou carregar a vida de todo mundo que mora nele. Significou acordar com o rádio apitando e dormir com o rádio apitando. Significou virar muro humano entre o povo e a polícia. Significou ser a pessoa que resolve treta que ninguém quer resolver. De repente, eu era a fronteira entre a paz e a guerra. Entre a ordem e o caos. E por mais pesado que fosse… Eu fazia. Faço até hoje. Porque se eu não fizer… ninguém faz. E em cada decisão difícil que eu tomo, eu penso nela: A Diana. Minha razão. Meu motivo. Minha prioridade desde sempre. Eu nunca deixei ela se envolver com essa vida. Nunca deixei ninguém chegar perto dela com intenção errada. Nunca deixei ela ir em baile sem três dos meus na sombra, mesmo que ela achasse que era coincidência. Eu dei pra ela tudo o que eu não tive. Tudo. Escola boa. Curso de inglês. Farda nova todo ano. Mochila cara. Professor particular quando precisava. Computador. Livro. E liberdade. Principalmente liberdade. Porque eu prometi que ela jamais seria engolida por esse morro. Ela nasceu aqui, mas não nasceu pra morrer aqui. Ela nasceu pra voar. E o voo dela depende do chão que eu seguro. Eu mato, eu morro, eu faço guerra, eu faço paz… mas ela? Ela só vive. Simples assim. A Diana nunca soube — e não precisa saber — o que eu fiz pra garantir a vida que ela tem. Não precisa carregar o peso que eu carrego. Não devia ver as coisas que eu já vi. Não devia saber quantas vezes eu botei meu corpo na linha pra manter o nome dela limpo. Pra ela, eu sou só o irmão. O ombro. A sombra. O abraço que ela correu quando tiraram nossa mãe de nós E é assim que tem que ser. Hoje ela é mulher. Linda, inteligente, cheia de brilho e de futuro. E cada vez que eu olho pra ela… eu vejo o maior acerto da minha vida. Mas tem uma coisa que ela não entende: O morro nunca dorme. Nunca descansa. Nunca baixa guarda. E naquela noite… Quando o rádio tocou às duas da madrugada. Quando a voz do vapor que eu mais confio avisou: — Patrão… a Diana acabou de passar aqui na barreira e eu acho que tinha alguém no carro com ela. Meu sangue gelou. A mão que segurava o rádio tremeu. O mundo parou. O coração bateu no pescoço. Diana de vez em quando dá umas mancadas, ela tá ligado que ela não pode trazer ninguém para cá sem me passar a visão. Já falei para ela que ela é muito ingênua e que ela precisa ter o máximo de atenção possível porque só de morar aqui e ser minha irmã, podem se aproximar dela na maldade. Eu levantei num pulo. O rádio quase caiu da minha mão. A primeira frase que saiu da minha boca foi instintiva, pura, crua: — O que essa garota acha que tá fazendo? Porque tem uma verdade que a vida me ensinou do jeito mais duro possível: Quem eu amo… eu protejo. Mesmo que seja dela mesma. — pode deixar que eu resolvo essa parada Leozinho, valeu aí por avisar e fica na atividade jáé?.- falei para ele e fui na direção da minha moto para ver se eu acho ela. Chegando no baile, já tava pocando tudo. Olhei em volta vendo o carro da Diana estacionado longe, O que significa que ela já está por aqui. Seguir em direção à entrada da quadra, meus homens já abriram caminho para mim passar e eu subir direto para o camarote porque lá de cima consigo ter uma visão melhor de todo o baile. Diana não podia ter trago ninguém para cá sem me comunicar antes, e ela pode ter certeza que depois ela vai ouvir um bolão. Continua....
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