Seria cômico, se não fosse trágico, dizer que eu odeio finais de semana.
Nem sempre odiei; ainda me lembro de passar dias quentes de verão no parque cavalgando ou os invernos lendo até os meus olhos não aguentarem. Isso mudou depois que passei a ser uma peça chave do acordo entre a minha família e os Galvão. Desde então sempre houve um evento, um almoço, um coquetel ou um chá da tarde em que eu precisava ser mostrada ao mundo como a futura senhora Galvão.
Eu era o troféu deles;
Eu sou a salvação da minha família e completamente infeliz.
Esse era sempre o meu pensamento quando eu era apresentada em eventos como o que eu estava agora. Era o domingo da Salvação Cristã e várias famílias abastadas promoviam um almoço beneficente que era uma fachada óbvia demais para fazer negócios. No mundo eles se pintam como os salvadores, mas dentro daquelas paredes, sentados nas mesas com pratos caríssimos, o único propósito era aumentar as próprias fortunas.
O Fábio falou um total de três palavras para mim e eu me limitei a sorrir, sem me esforçar para usar a voz com ele e assim passamos uma hora inteira, sentados um ao lado do outro.
O evento estava cheio, um verdadeiro formigueiro de pessoas interesseiras, conversando animadas e que faziam orações por todos os lados, sempre que alguma câmera aparecia.
- A sua cara está péssima. - A voz familiar da Klara sussurrou ao pé do meu ouvido.
- Eu me sinto péssima. - Respondi, um pouco alto, me esquecendo de disfarçar e atraindo alguns olhares curiosos. - Deve ter sido algo que eu comi. - Falei rápido, enquanto a minha amiga sorria timidamente para mim.
Klara Castanho era, como ela mesma dizia, o meu bote salva vidas, para eventos como aquele. Desde que eu me lembro éramos amigas e sempre nos afastamos, dos olhares curiosos, quando uma das duas não aguentava mais, com a desculpa de falar sobre qualquer coisa que meninas da nossa idade falassem. A nossa amizade nunca foi um segredo, o verdadeiro segredo estava na aceitação do que realmente pensamos sobre estarmos ali. De como deveríamos nos comportar e as regras que deveríamos seguir.
Eu odiava a minha vida e como fui criada e para o que eu servia, e ela odiava a falta de liberdade. Só que, diferente de mim, o futuro da família dela, não dependia das decisões dela. Desde que o pai dela, viúvo a 10 anos, não sofresse nenhum escândalo, ele não se importava muito com as decisões da filha.
Salvo a amizade comigo e outras decisões que ele nem imaginava.
Heitor Castanho sempre foi educado comigo, mas nunca pareceu aprovar a nossa amizade. Depois eu descobri que a questão dele era a falência quase certa da minha família.
A própria Klara me contou certa vez que ele recusou o pedido de ajuda do meu pai, duas vezes, e as peças se encaixaram.
A verdade era que quando a nossa ruína chegasse, ele não queria a filha perto de mim.
Esse era um dos motivos da minha lista para aceitar a relação com o Fábio.
- Precisa tomar um ar? - Ela perguntou baixinho, com os olhos fixos no homem nojento ao meu lado.
O homem que se tornaria o meu marido, muito em breve.
- Sim. - Implorei e ela se moveu.
- Fábio, a Gio vai me acompanhar para um passeio no jardim. - Ela informou ao meu futuro marido que estava completamente entretido em uma conversa com mais dois homens que eu esqueci os nomes, quase imediatamente, assim que me foram apresentados.
- Sem problemas, Klarinha. - Ele respondeu sem nem mesmo olhar para ela.
Em momento assim eu sentia que ela também era um bote salva vidas para ele. Se livrar de mim era quase que uma alegria para o desgraçadö.
5 segundos foi o que levou para enroscar os nossos braços e deslizarmos pelo salão, com sorrisos tímidos, tentando não chamar atenção, em direção a porta dos fundos, que brilhava como um portal para o paraíso.
O evento acontecia normalmente no The Union Club of Boston, o “clube de rico” mais familiar para nós. Por isso, sabíamos exatamente para onde ir.
Caminhamos ainda em silêncio e de braços dados pelo jardim, circulando duas fontes de água, até a entrada do labirinto de flores.
Direita, esquerda e depois esquerda de novo, e a Klara finalmente falou.
- Deveríamos fugir. - Essa afirmação era quase um bom dia na boca da minha amiga.
- Vamos, agora! Eu dirijo. - Eu respondia todas as vezes, antes de rirmos juntas, virando a última direita, antes do centro do labirinto.
Bancos e sombras eram dispostos ali e já tínhamos conversado sobre só nós duas conhecermos aquele lugar muitas vezes, porque nunca tínhamos encontrado ninguém ali naqueles anos todos.
- Terminei com o Fábio ontem. - Falei enquanto me sentava no banco de sempre.
O choque na expressão da Klara me fez sorrir, o sorriso mais triste que eu tinha no meu repertório, antes de esclarecer. - Durou 5 minutos. A Dona Elza chegou e me fez implorar por perdão por uma hora. - A minha amiga bufou e finalmente se sentou, deitando a cabeça no meu ombro.
- Poderíamos mesmo fugir. - Ela falou sério dessa vez.
- Klarinha… - Eu comecei mas ela me encarou, antes de continuar.
- Estou falando sério. É injusto demais você ser obrigada a viver a vida inteira com um homem escroto como ele, apenas por dinheiro.
- O legado da família Mantovani ou a minha felicidade? - Perguntei, usando muito sarcasmo. - Os meus pais adorariam.
- Eu estou falando sério. - Ela falou com firmeza. - Assim que você se formar, eu me comprometo a patrocinar a sua fuga para qualquer lugar no mundo, e você pode começar do zero…
- Klarinha, eu gostaria que fosse simples assim. - Refleti por um momento.
Se a questão fosse apenas a minha mãe, eu partiria agora mesmo, mas não era. Eu via, dia após dia, o meu pai definhando e se afundando mais e mais na própria vida, dentro do próprio vício. Eu partiria, sendo a única esperança de resolver os próprios erros e ele não suportaria.
Eu seria culpada pela morte do meu pai.
- São apenas 10 anos e dois filhos. - Falei para ela, o que eu sempre pensava. - Depois posso separar.
O contrato que estabelecemos não seria eterno. Eu precisava ficar casada por 10 anos e gerar dois herdeiros, e depois eu estava livre. - Nem vamos perceber o tempo passar. - A minha amiga nunca comprava o meu argumento, e estava pronta para começar a traçar um plano, quando o celular dela vibrou e toda a feição dela mudou. Gratidão foi o sentimento que me tomou, ao ver os olhos dela brilhando para a mensagem que recebeu.
- Vá logo. - Mandei, sabendo exatamente onde a minha amiga passaria a próxima hora. - Ela não vai te esperar para sempre. - Sussurrei e ela sorriu, como uma criança prestes a aprontar.
- Ela é uma delicia. - Ela justificou. - Mas, você precisa muito de mim.
- Eu ainda estarei aqui quando você terminar de gözar. - Dei de ombros e ela riu alto.
Klara Castanho tinha um segredo que faria o pai dela ter uma ataque. Se ser minha amiga quase deixava o homem malucö, imagina saber que ela era completamente apaixonada por uma das sócias dele?
Klara e Karina mantinham um caso de amor fazia uns 2 anos, e nunca poderia ser revelado, e em eventos como esse, elas sempre se enfiavam nos cantos mais escondidos…
- Eu prometo não demorar. - Ela falou, ficando de pé.
- Não prometa. - Pedi, antes que ela me desse um beijo estalado no rosto e saísse em disparada por onde viemos, me deixando sozinha com os meus pensamentos.
Por sorte, eu trouxe um livro e estava sorrindo ao correr para o banco com sombra, para aproveitar pelo menos uma hora inteira sozinha, em outro mundo.
Não sei por quanto tempo eu li, mas não demorou para eu ouvir alguém se aproximando.
O meu corpo inteiro tremeu e eu precisei apertar as pernas para não demonstrar o choque que me correu ao encarar o homem que entrou no centro do labirinto.
Com olhos famintos na minha direção.
Olhos que estavam no meu sonho da noite passada.