Gabriela
Fiquei no hospital por sete dias.
Sete dias de silêncio, dor e angústia.
Sete dias com o corpo inteiro gritando e a cabeça afundada numa tempestade.
Não conseguia falar direito, m*l conseguia me sentar na cama.
Os médicos diziam que eu precisava ficar quieta, esperar o inchaço baixar, o corpo voltar a funcionar. Fraturei algumas parte do meu corpo, e o meu braço esquerdo foi nessa também. Tudo me doía.
Mas a minha mente…
Minha mente corria louca, tentando achar uma saída.
Eu sabia que o Farias continuava ali, lá em casa, na boca, fazendo a vida dele.
Deixava as crianças com a babá, vivendo normalmente como se eu tivesse ido apenas em um salão de beleza e logo voltaria, não tava nem aí com a minha ausência com as crianças.
Aquele homem tava destruindo tudo.
A minha vida, a minha família.
Não tinha pra onde correr.
Não tinha quem me defendesse.
Não tinha ninguém.
Até que uma coisa ficou clara dentro de mim:
O único que podia resolver aquela merda toda era o chefe.
Cleiton.
O dono do morro.
Ele era quem mandava.
Quem tinha o poder de acabar com o que eu tava vivendo.
De dar um fim, uma última forma pra esse casamento de merda com o Farias.
Eu não sabia se ele ia me ajudar.
Se ia querer me ouvir.
Se ia dar essa última forma.
Mas eu tinha que tentar.
Era minha única chance.
Quando finalmente consegui andar de novo, mesmo que com dificuldade, eu juntei o pouco de força que restava e decidi:
Eu ia até ele.
Porque quem manda no morro era ele.
E eu não podia mais ser refém daquele monstro.
(...)
Saí do hospital ainda fraca, mas firme na decisão. Alice me ajudava a andar, nunca me largando.
O sol batia forte lá fora, a favela fervendo como sempre, pessoas subindo e descendo, fazendo seu corre, atrás do seu pão de cada dia.
Chegamos na boca onde o Cleiton ficava. A fumaça subia devagar, misturada com o calor do meio-dia.
Alguns vapores ali na frente pararam pra olhar, sabiam quem eu era, sabiam o que eu tava passando.
Cheguei perto da porta, respirei fundo e falei:
- Quero desenrolar um assunto com o Cleiton. É urgente.
Um dos caras na porta me olhou e falou:
- Valeu, vou falar com o chefe e ver se tu pode entrar._ Assenti com a cabeça e ele foi entrando.
Depois de um tempo que pareceu uma eternidade, o homem voltou.
- Pode entrar.
Segurei firme no braço da Alice e entrei devagar, segui até a sala que o rapaz apontou ser a do Cleiton.
A porta abriu e eu entrei devagar, a Alice firme do meu lado. O Cleiton tava ali sentado, do jeito dele, largado na poltrona, aquele olhar cortante que atravessa até pensamento. A fumaça do baseado rodava no ar, e o silêncio da sala pesava.
- Senta aí, Gabriela._ ele falou sem tirar o olho de mim, apontando com o queixo pra cadeira na frente.
Me sentei devagar, sentindo cada dor ainda viva no meu corpo. Alice ficou de pé, do lado, com a cara dura.
Cleiton largou o copo no braço da poltrona, cruzou as pernas, deu um trago demorado e soltou.
- E então, tá querendo trocar ideia comigo? Solta a voz aí.
Engoli em seco. A boca secava só de tentar começar, eu estava receiosa, mas não tinha pra onde correr. Respirei fundo e falei,
- Eu... eu vim aqui porque preciso da sua ajuda, Cleiton. Preciso que você dê um fim nesse casamento. Preciso da última forma, do jeito que só você pode dar. Eu não aguento mais viver com o Farias, não quero mais. Ele quase me matou. Tenho dois filhos, tô toda quebrada por dentro e por fora. Me ajuda, por favor.
Ele encostou melhor no encosto da cadeira, me olhou sério, olhos apertados, sem mudar o tom da voz:
- Fiquei sabendo dessa fita aí que aconteceu contigo. Mas me diz aí. que porr@ foi que rolou pra esse fudid0 do Farias te dar essa surra?
Cleiton ficou me olhando de cima, aquele olhar frio de chefe que não treme nem com grito de morte.
- Desenrola o bagulho todo, Gabriela. Sem caô. Quero saber o que aconteceu do início até o fim. Por que caralh0 o Farias te deixou daquele jeito?
Senti minha garganta fechar, o corpo tremer, mas eu não tinha mais pra onde correr. Se eu tava ali, era pra soltar a verdade.
- Eu... _minha voz falhou, respirei fundo. - A gente tava no pagode, tudo certo. Eu tava com ele, depois fui ficar com as meninas, demorou um pouco, não vi ele mais, saí pra procurar, não achei, decidi ir pra casa, quando cheguei em casa._ parei, fechei os olhos, o nó na garganta parecia me engasgar. - Ele tava no sofá, transando com a Jasmim, transando ali na sala da nossa casa, onde nossas crianças moram.
Cleiton nem se mexeu. Só ficou me encarando, esperando mais.
- Eu surtei, chefe. Gritei, fui pra cima. Ele tentou me fazer parar, mandou eu parar mas eu tava put@ de raiva, de ódio, eu sabia que ela sempre teve de rolo com esses rabos de saia daqui do morro, mas ali, ali na nossa casa foi o auge, foi muito baixo, foi covarde. Eu cuspi na cara dele, dei um tapa. E aí... aí ele virou um bicho. Me quebrou toda. Me jogou no chão, me chutou, me deu murro, puxou meu cabelo, me arrastou pela casa. Eu achei que ia morrer naquela porr@, de verdade.
Minha voz começou a falhar, as lágrimas escorreram antes que eu pudesse segurar.
- Quando eu acordei, já tava no hospital. A Alice ficou comigo, Meus filhos. ficaram lá com ele. Eu não sei o que ele disse pra eles. Eu só quero sair dessa, Cleiton. Pelo amor de Deus. eu não quero mais voltar pra lá. Só você pode resolver essa merd@ pra mim, só você pode bater de frente com o Farias, se tu não me ajudar ele vai acabar me matando, as minhas crianças pô, vão crescer nesse inferno vendo o pai agredir a mãe. Que não seja por mim chefe, pelas minhas crianças, eu te imploro, me libera do Farias, dar a última forma pra nós.
Fiquei em silêncio, o rosto molhado, o corpo tremendo, mas o olhar fixo no dele. Esperei ele dizer qualquer coisa.
Cleiton deu mais um trago no baseado, soltou a fumaça pelo canto da boca, e então balançou a cabeça devagar.
- Já tinha palmeado tudo, Gabriela._ Minha respiração prendeu. Ele sabia. -Tu acha que eu não já tinha puxado o fundamento? Cês acham que eu mando nesse morro há anos sem saber o que acontece debaixo do meu nariz? No mesmo dia que tu deu entrada no hospital, eu já tava ligado. Mandei um dos meus ir lá ver tua situação. Sabia que tu tava toda fudid@, quebrada até o osso.
Ele largou o corpo um pouco pra frente, apoiando os dois cotovelos no joelho, com o olhar cravado em mim.
- Só que eu fiquei quieto. Na minha. Sabe por quê?
Não respondi. Só fiquei ali, encarando ele com os olhos marejados.
- Porque eu queria ver qual ia ser tua postura. Qual ia ser a tua, Se tu ia sair do hospital, botar a cara no sol e correr atrás da tua vida... ou se ia voltar pra aquele fudid0 calada, aceitar a surra e continuar sendo saco de pancada.
Tu vir aqui hoje... já me mostrou o bastante.
Ele se recostou de novo, soltou o baseado no cinzeiro e me encarou sério.
- Agora o bagulho é outro.
Cleiton pegou o copo, virou o resto da bebida de uma vez e largou em cima da mesinha com força, sem tirar os olhos de mim.
- Quer a última forma? Pois tô dando a última forma.
O silêncio que se fez ali foi pesado. Meu coração disparou, mas eu sabia que ainda vinha mais.
- Só que tu tá ligada, né Gabriela.. que pelo morro tu não vai poder ficar._ Eu engoli seco. Já imaginava. - Tô te liberando, tu tá fora do casamento, fora do vínculo com o Farias. Mas pra tu sair limpa dessa fita e não correr o risco de dar merd@ de novo... tu vai ter que ir pra outro canto. Tu não vai ficar rodando aqui como se nada tivesse acontecido.
Ele se ajeitou na cadeira, firme.
- Tô te dando a chance, mas eu não sou babá nessa porr@, não vou dar uma de babá de mulher que leva porrada e fica no meio do campo do agressor. Se tu continuar aqui, vai ser só questão de tempo até esse fudid0 cruzar contigo de novo. E aí, se der BO, sobra pra mim novamente resolver, e vira uma bola de neve, toda vez a merma porr@, Não vou comprar guerra de desentendimento de casal na minha porta. O bagulho é definitivo, cortar o m*l pela raiz.
Deu um tempo, e soltou:
- Vai ser do jeito certo: vou te liberar e tu vai sair dessa em paz. Mas tu vai sair do morro. Tá entendendo?_ Assenti com a cabeça.
Cleiton bateu a palma da mão no braço da poltrona e completou:
- Vou mandar dois dos meus contigo. Cês vai descer lá na tua casa, tu vai ajeitar tuas paradas, pegar tuas cria... e vazar.
Meu coração acelerou, mas fiquei em silêncio, ouvindo tudo.
- Pode ficar na casa da tua amiga por enquanto, até ver pra onde vai, se ajeitar, pensar com a cabeça. Mas tu sai do morro hoje mesmo, Gabriela. Hoje. Eu não quero ver tu rodando por aqui mais, porque o Farias tá solto, e eu não vou ficar no meio de guerra de macho e fêmea.
Ele me olhou firme, o tom seco e final.
- Não tô fazendo isso por pena. Tô fazendo porque tu foi mulher de vir aqui, pedir tua saída do bagulho com a cabeça erguida. Agora tu faz tua parte e desaparece da Rocinha. É o mínimo pra não dar r**m pra nenhum dos lados.
Alice apertou meu ombro devagar. Eu assenti, com os olhos marejando de novo, mas sem coragem de retrucar. Eu não estava nem acreditando, eu ia me livrar do Farias, não sabia nem para onde ia, mas só de saber que eu ia me livrar daquele homem já era tudo para mim.