Cap. 3— Viral

3030 Words
“Falar da vida alheia era a arte suprema [...] levada a incríveis refinamentos [...]. Está reunido o Congresso das Línguas Viperinas.” (Jorge Amado - Gabriela, cravo e canela) Acordei em um dos quartos da casa. Me levantei e apoiei os braços na cama. Olhei ao redor e aquele cômodo me pareceu de certa forma familiar, apesar da penumbra que não permitia reconhecer muita coisa. O que não deixava de ser estranho, considerando que, com exceção do invejável quarto onde Milena dormia, eu nunca tinha explorado os demais dormitórios daquela casa antes. Deixei a cama com passos incertos e fui até a porta do quarto. Dava para ouvir o barulho da festa rolando lá embaixo. Provavelmente ninguém tinha dado muita moral para o meu desmaio. Mas o que um N.A.D.A. como eu poderia esperar? Ganhei o corredor, que parecia mais escuro e longo do que o habitual. As pessoas ao meu redor eram vultos disformes, cujos rostos eu não conseguia distinguir com muita precisão. Acho que devia ser o efeito do álcool, ainda consideravelmente presente em minha corrente sanguínea. Desci as escadas até o térreo, cercado de feições e silhuetas borradas que eu não conseguia distinguir. Meu Deus, o que está acontecendo comigo? Tentei atravessar a sala lotada, mas as pessoas dificultavam a passagem. De repente alguém me puxou para trás pelo braço. Era Fred Maciel. Seus olhos azuis pareciam acesos em meio à pouca iluminação da festa. — Por quanto tempo você achou que ia fugir de mim? — Ele me perguntou em um tom que não combinava com sua personalidade. Eu nunca tinha visto Fred, sempre tão gentil e educado, falar com alguém daquele jeito. — Mas eu não tô fugindo... — Rebati com a voz enfraquecida. Não sei se era o efeito da bebida, mas eu quase não conseguia falar. — Claro que tá! — Ele me segurou pelos dois braços, apertando-me com força e colando nossas pernas em um contato carregado de tensão. Estávamos com os rostos perigosamente próximos. Eu podia enxergar o contorno fino de seus lábios rente aos meus olhos. — Você deve se achar muito mesmo, né, Sininho? Para não querer entrar no Grupo de Teatro só porque todo mundo acha a gente esquisito. Você é um NADA, mano, um NADA! SININHO? Fred nunca tinha me chamado daquilo! Tentei me livrar do seu aperto, mas ele parecia ter ganhado uma força descomunal para sua constituição física pouco avantajada. Encarei-o assustado, mas seus lábios, de repente, ganharam um contorno mais volumoso e atraente. O tom branquelo de sua pele ficou n***o. No lugar dos cabelos aloirados e do rosto de traços finos, espessos e reluzentes cachos ondulados caíram pelo rosto da pessoa que me segurava. Então, uma boca vermelha escarlate, bem desenhada, abriu-se num sorriso autoconfiante de dentes aparelhados. Seu maxilar era marcado e tinha alguns fiozinhos de barba distribuídos. — Eu não quero que ninguém saiba que eu e você vamos pro colégio juntos, manja? — Fred tinha se transformado em Anderson. Mas ele não estava mais fantasiado como antes e sim vestindo o seu habitual uniforme do time de futsal. Apenas assenti assustado, sem a menor condição física de responder. Eu buscava com todo esforço fugir daquele aperto assassino, mas Anderson me pressionava cada vez mais contra o seu corpo. Era até possível sentir sua pele, sob as vestes, encostando-se na minha... O hálito adocicado vinha forte contra minhas narinas. Com certo desespero, percebi que Anderson se aproximava para um beijo indesejado. — Você me acha bonita, fofinho? — Anderson se transformou em Sofia e perguntou em uma voz gutural, quase demoníaca, quando colou sua boca junto a minha. O engraçado é que seus lábios estavam secos, sem o menor indício de gloss ou batom. — NÃO! — Gritei e chute a estranha criatura híbrida de Fred/Anderson/Sofia contra a multidão. Virei para correr dali, mas meus pés estavam muito pesados e não consegui tirá-los do chão, o que me fez cair no meio da pista. Comecei a gritar e a chorar desesperadamente. Puxei minhas pernas minúsculas contra meu corpo e esvaziei meus pulmões, berrando com o máximo de força que encontrei, enquanto lágrimas escorriam pelo meu rosto. Tudo girava... — Otávio! — Ouvi alguém chamar ao longe. — Otávio, para de gritar, mano, calma! — A pessoa pediu. Abri os olhos e um clarão fluorescente invadiu as minhas retinas. Resfoleguei assustado, olhando para os lados de modo frenético. Onde eu estava? Que lugar era aquele? — Calma... — Ouvi Anderson balbuciar com a mão contra o baixo-ventre e os olhos semicerrados de dor. — Que lugar é esse? — Perguntei completamente confuso. Nós estávamos em um corredor desconhecido, ambos sentados em um requintado piso vinílico de madeira. E minhas roupas tinham sumido! Eu vestia uma camiseta e uma samba-canção desproporcionais para o meu tamanho. — Minha casa. — Anderson respondeu com a voz enfraquecida, ainda se retorcendo de dor. — Eu trouxe você para cá depois que deu PT na festa da sua amiguinha. — SUA CASA? POR QUÊ? — A Alana me pediu. Ela ficou com dó de ver você lá caído... Além disso, seu pai é amigo do meu, manja? Pelo que eu sei, ele ia ficar putaço se soubesse que você passou m*l na frente de todo mundo. Encostei a cabeça na parede, sentindo-me confuso. Não fazia sentido... Anderson me levar para sua casa, ainda mais a pedido de Alana? O que tinha acontecido que nem Lara, Milena ou Letícia me ofereceram ajuda? — E as meninas? — Perguntei por minhas amigas. Tinha que ter uma boa explicação para nenhuma delas ter me ajudado. Anderson apenas deu um sorriso fraco e levemente debochado. — Acho que você vai ter que perguntar para elas... Porque as três sumiram. Aquela ruivinha lá que eu não lembro o nome foi embora com um cabeludo, sei disso porque um dos moleques me contou. A Milena parece que estava se pegando com o Fred. — Anderson fez uma expressão de curiosidade. — Engraçado, eu sempre achei que ele fosse v***o, mas enfim. E a Javali sumiu de vez. Quer dizer que eu tinha passado m*l, estava precisando de ajuda e provavelmente as três me deixaram por causa de macho? Foi preciso que uma menina que nem fala comigo direito me ajudasse… — E por que você taí sofrendo desse jeito? — Perguntei. — Porque você acertou meu saco com seu joelho, Sininho! Eu levantei pra pegar água e vi você aí no meio do corredor, falando sozinho. Bizarro demais, cara! Daí tentei fazer o que falam pra gente fazer quando vê um sonâmbulo, manja? Levar de volta pra cama, com calma e não sei que, mas você começou a berrar igual doido e ainda me deu uma joelhada no saco. Que joelho filho da p**a, mano! Meu sonambulismo surgiu quando eu era bem pequeno, assim que minha mãe faleceu. Mas depois de anos de tratamento, as crises se tornaram cada vez mais raras. Só que ao atravessar aquela noite intensa, não era surpresa que elas tenham voltado a se manifestar. — Desculpa... Anderson ficou de pé, após se recuperar do golpe baixo (e involuntário) que eu lhe dei. — De boa, Sininho. — Ele me estendeu a mão e me ajudou a ficar de pé. — Vou fazer um chá para ver se você volta a dormir. Fomos até a cozinha do apartamento. Anderson me contou que estava sozinho em casa, porque seus pais tinham ido a um congresso de medicina em Campos do Jordão. Seu pai, Dr. Leonardo Pelizari, era médico assim como o meu. E, pelo menos até onde eu sabia, ambos eram amigos. A cozinha era sofisticada e moderna, no mesmo padrão que os demais cômodos do apartamento. E muito espaçosa também, toda em estilo americano. Enquanto Anderson remexia no armário e colocava a água para ferver, eu me apoiei no balcão de mármore e me sentei em um dos bancos giratórios. Era alto e minhas pernas ficavam balançando como as de um boneco. — Ainda não acredito que desmaiei na festa... Eu bebi tão pouco. — Comentei com frustração. — Ah, cara, acontece. — Anderson permanecia de costas para mim, concentrado em depositar os sachês de chá na água fervendo para fazer infusão. Um cheiro agradável de camomila ganhou a cozinha. — Pra ser bem sincero eu nem vi você dando PT, porque estava com os moleques. — Ele se voltou para mim e empurrou o copo com chá pelo tampo do balcão. — Só fui saber da treta quando a Alana voltou do banheiro e pediu ajuda para pegar você… Engoli em seco, antes mesmo que eu pudesse beber o chá. — Me pegar… Como? — Te pegar, ué… Como se pega alguém que tá desmaiado, manja? No colo e pá. Fiz uma careta de constrangimento. O Otávio daquela hora sentindo uma p**a vergonha alheia do Otávio da festa. Anderson também pareceu um pouco envergonhado ao lembrar daquilo e depois de um gole longo e contemplativo em seu chá, ele acrescentou: — O pior não foi nem isso. Os moleques estavam te zoando pra c*****o. Se prepara que segunda vai ser f**a no colégio. Eu tinha pensado em chamar a ambulância, mas a Alana praticamente me obrigou a te trazer pra cá. Ela sabe que eu tô sozinho e que eu e você somos colegas de carona. — Você contou pra ela? — Estranhei. Anderson se apoiou no balcão. Sorveu mais um pouco do seu chá e disse, secamente: — E como é que eu vou esconder isso dela? A Alana é minha mina. Escondeu da escola toda. Achei que fosse incluir sua namoradinha no pacote. — Mas olha, Sininho, isso é assunto nosso. — Arregalei os olhos para observar Anderson dizer, enquanto bebia meu chá vagarosamente. A sensação era muito boa e relaxante. — Se alguém perguntar, você dormiu na casa da Javali. Nunca nem pisou aqui. Aliás, você nem sabe onde eu moro, demorô? — Demorô... — Concordei segurando o copo de chá com as duas mãos. — A gente tá dormindo no mesmo quarto? — Achei que valia o risco perguntar, mesmo porque eu não ficava nem um pouco confortável com a perspectiva de dividir um cômodo com Anderson Pelizari. — Claro que não. Eu tô no meu quarto, você tá no de hóspedes, que em breve vai deixar de ser de hóspedes, porque meu primo tá vindo da Itália passar uns dias aqui com a gente... — Anderson terminou seu chá e colocou o copo vazio sobre a pia. Depois, apoiou-se no balcão com uma linguagem corporal um tanto quanto pensativa. Deduzi que ele não devia gostar muito desse primo que estava vindo. — Desde que você entrou na nossa turma, no meio do nono ano, eu nunca entendi muito bem esse lance de você ter morado tanto tempo na Itália. Tipo, você é brasileiro... Não tem sotaque nem nada. Mas ficou uma boa parte da sua vida fora, estudou lá… — Vixi, Sininho, se você soubesse a treta que essa história é… Melhor nem falar nisso. Muita complicação pra cabeça. A resposta não me convenceu, por isso eu sustentei um olhar interrogativo em direção ao meu “anfitrião involuntário” e ele se viu pressionado a me responder. — O que aconteceu foi que eu fui pra Itália quando era criança, onde eu vivi um bom tempo com meu avô e tio paterno. Acho que a ideia era me dar uma boa educação, talvez. Mas quando eu cresci e senti falta de casa, resolvi voltar. E agora tô aqui abrigando você contra minha vontade. Nossa, essa doeu! Depois daquela patada gratuita, eu preferi ficar quieto. Anderson também não falou mais nada. Terminei o meu chá em silêncio e o mais rápido possível. Depois disso, meu anfitrião involuntário pegou meu copo vazio e o colocou junto ao dele dentro da pia. Feito tudo isso, Anderson apagou as luzes da cozinha e fomos para o corredor. Lá ele me deu orientações de onde era o banheiro, sobre os interruptores de cada cômodo — para o caso de eu sentir sede durante aquele resto de madrugada — e me disse, de forma pouquíssimo convincente, que eu poderia chamá-lo caso precisasse. Depois, simplesmente me deu as costas e entrou em seu quarto. Sem se despedir. — Boa noite... — Sussurrei, desejando muito mais para mim do que para Anderson. *** Anderson estava certo quando disse que eu seria o assunto no colégio na segunda-feira. Já no corredor eu fui alvo de olhares maliciosos e comentários risonhos. Quando cheguei à sala, nenhuma das meninas falou comigo, principalmente Lara que vinha fugindo de mim, sem responder minhas mensagens ou atender às minhas ligações. Falei com Milena no intervalo das aulas da manhã, que soltou os cachorros em cima de mim. Segundo ela, seus pais ficaram horrorizados com minha postura e, ao descobrirem que ela serviu bebida na festa contra a autorização deles, deixaram-na de castigo. Já Letícia, que era unha e carne com Milena e bastante influenciável, foi na onda de sua BFF e também não interagia comigo mais do que o necessário. Mas como sempre, a conversa com Lara foi a mais difícil. Eu só consegui falar com ela no intervalo entre os turnos. No pátio, desavisada, a encurralei em um canto e não lhe dei oportunidade para fugir de mim. — Já que você não respondeu nenhuma mensagem e nem me atendeu, quem sabe agora, na cara, você me explique porque sumiu de vez na festa da Milena e me deixou lá sozinho. — Falei quase engasgando de tanto nervosismo. — Mas pelo o que eu fiquei sabendo, você aproveitou bem na minha ausência. — Ela ironizou. — Não interessa, Lara! — Me exaltei. — A gente tinha combinado que eu iria embora com você, de carona com seu pai. Você sumiu, não me atendeu quando eu te liguei. — Beleza, Otávio! Não precisa dar chilique. O que aconteceu é que eu fui no banheiro, encontrei uma menina do primeiro ano passando m*l lá e chorando muito. Daí resolvi ajudar a coitada, chamei um táxi e fui com ela até em casa. Quando eu voltei, você é quem tinha sumido e eu fiquei sabendo pelos outros do seu vexame — Como você gosta de bancar a cínica, Lara! Você sumiu a noite toda com o dinheiro do meu uísque e agora vem pagar de certa. — Então é esse o seu problema? — Ela pegou sua bolsinha rosa e retirou algumas notas enroladas lá de dentro. — Toma, eu ia já te entregar mesmo. Eu não preciso desse dinheiro sujo. Lara disse aquilo e saiu. Fiquei como um bobo com aquele dinheiro na mão no meio do pátio. Guardei as notas no bolso e saí andando, puto da vida. Quem aquela demônia achava que era para me tratar daquele jeito? Minha melhor amiga é que não era! Melhor amiga o c****e! Eu nem tinha mais condições de ficar no pátio. Decidi voltar para a sala e esperar lá dentro até que as aulas da tarde começassem. No entanto, fui surpreendido logo na entrada da ala oeste do colégio, onde ficava o corredor do Ensino Médio. Os Meninos do Futsal estavam empoleirados, feito urubus, na escada que dava acesso à ala oeste. Encostados nos dois corrimãos, rindo de alguma piadinha interna. Hesitei a poucos metros. Continuar ou não? Aquilo era um corredor polonês. Respirei fundo e inspirei o máximo de coragem que consegui. Segui caminho. Foi só eu me aproximar para Nicolas, o Líder dos Meninos do Futsal, ir logo dizendo: — Olha só quem vem chegando, a nossa estrela da festa. Não dá moral pra esse bosta, Otávio. Só passa e deixa quieto. Tentei ignorar e continuar subindo, mas Nicolas se colocou na minha frente. — Deixa eu passar, Nicolas. Por favor. — Pedi sem agressividade, nem educação. Minha voz saiu quase que de forma mecânica. — Ui, mas agora que ela tá famosa já tá até dando ordem… Nicolas riu e olhou para os outros Meninos do Futsal, que o acompanharam. Exceto Anderson, encostado no corrimão próximo à porta, que assistia a tudo aquilo com uma expressão preocupada. — Como assim “famoso”? Do que cê tá falando? — Ué, Sininho… Ficou sabendo não? Então o Escroto-mor, vulgo Nicolas Leme, pegou seu celular e me mostrou o motivo de tantos risinhos debochados. Era um vídeo que tinha sido gravado na festa da Milena, no sábado, em que eu dançava ridiculamente ao som de Footloose. Claramente bêbado, fora de mim, e sendo incentivado pelas pessoas em volta. — Isso foi postado? — Perguntei. — Claro, fi, já é fenômeno de visualizações! — Ele riu novamente e abriu uma aba do YouTube. Era eu no vídeo, cujo nome era “Menino gay bêbado em festa”. — Mancada, hein, Sininho? A Javali se matando pra conseguir 100 visualizações com aqueles vídeos ridículos de maquiagem e você pega e passa na frente dela sem nem saber. Mais uma onda de risos dos Meninos do Futsal. Que ódio que eu senti naquele momento. Que vontade de quebrar os dentes do filho da p**a do Nicolas. Nem sei o que me deu, um acesso de coragem (ou falta de noção mesmo), mas tentei tomar o celular da mão dele (para fazê-lo engolir, se possível). Claro que deu m***a. Ele reagiu. Foi tudo tão rápido que só tive tempo de ouvi-lo rosnar um: “Tá doido, Sininho?!” e me empurrar com força para trás. Eu me desequilibrei e caí dois degraus para trás. A minha sorte foi ter, por reflexo, me segurando no corrimão. Minha perna direita escorregou para baixo e a esquerda se dobrou. Fiquei quase de joelhos sobre o cimento sujo do degrau. Pendurado como um boneco de pano, ouvi Nicolas chamar os Meninos do Futsal para saírem correndo dali. No choque, no susto, ainda um pouco humilhado, levei alguns segundos para erguer a vista e encarar os alunos por perto, que acompanhavam aquela movimentação. Foi quando vi uma mão sendo estendida para mim. A pessoa me ofereceu ajuda e disse: — Vem, levanta. Finalmente ergui os olhos para encarar quem era. Mas… Não podia ser…
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